Os ovos de Salazar

O meu reino por uma galinha

Já tinha na ponta da língua a palavra “Salazar” e, sei lá como, acabo a dizer a palavra “galinha”. E o que eu queria mesmo era falar de São Bento, desse palácio que assombra os portugueses, e onde crescem notas de euros nas páginas de livros e em caixas de vinhos.

São Bento, palácio e jardins, sofisticou-se. Houve um tempo em que São Bento era uma Animal Farm. Não a de Orwell, mas a nossa, idilicamente provinciana, como se, fechadas as portas que dão quase para a Calçada da Estrela, para ali se tivesse transplantado uma réstia da região saloia. Ou dessa Beira Alta de que os meus pais fugiram levando-me para a pujante selva tropical.

O que quero dizer é que, estava eu já na Vila Alice, em Luanda, onde não se via uma galinha na rua a picar o alcatrão, e no Palácio de São Bento, dos anos 60, corriam pelos jardins não só as galinhas, mas mesmo os coelhos, os perus, alguns patos. Dona Maria, a governanta de Salazar, espremida pela austeridade do senhor doutor ditador, queixou-se do preço a que andavam os ovos. E as carnes.

Cavaco Silva mandou construir nos jardins de São Bento uma piscina e não sei se António Costa, pouco dado a reformas estruturais, não deixou ficar tudo como antes, mas sei que Salazar, dando ouvidos à sua governanta, mandou fazer capoeiras. Eis a primeira fuga das galinhas: os galináceos portugueses marcharam para São Bento. À Beira Alta, a Santa Comba, Salazar deu uma suave ordem: “Quero que me mandem galinhas poedeiras!”

Luís de Pina, que foi com o João Bénard, meu saudoso director na Cinemateca, lembrava-me sempre um infalível critério estético:  um bom filme pode não ter galinhas, mas se num filme aparecem galinhas, ó critério sublime, esse filme faz certamente parte do panteão da história do cinema. Quem se esquece, no portentoso “Rocky II”, de ver Sylvester Stallone a adoptar novas técnicas de treino? Rocky Balboa é instado a apanhar uma galinha. É o apanhas: a galinha em esquindivas uá lá lá, dribles, fintas, cuecas e cabritos (se uma galinha faz cabritos) parte o Rocky todo e eis o que, desistindo, ouvimos da boca sábia da personagem de Stallone, em alusão ao frango frito de Kenctucky: “Sinto-me como um Kentucky fried idiot!”

Com o empreendedorismo que tomara muito totó da Web Summit, Dona Maria, em pouco tempo tinha centenas de galinhas, cerca de 300, asseguram as melhores fontes., bem mais do que os ministros que Salazar depenava e cozia em lume brando, e fez dos ovos das galinhas de Salazar uma fonte de rendimento. Desse “reino de Maria”, saíam aos 500 ovos por dia, que eram vendidos a hotéis, inclusivamente ao hotel onde se instalara o senhor Gulbenkian. Os ovos de Salazar eram, talvez, o “visto gold” daquele tempo.

Já disse que eu vivia então nessa dourada colónia chamada Angola, mas providencio agora aos meus leitores uma informação de fonte primária, que eu estou muito longe de ser só um rato de biblioteca. Já bem depois da morte do Império e da morte desse ditador, que faleceu a 27 de Julho, o meu dia de anos, morei na Teófilo Braga, a dois passos de São Bento. Uma das minhas vizinhas era uma velhinha, com 11 filhos, o último dos quais nascido em modo “faça você mesmo”, sem mais ninguém no quarto. Conhecera a Dona Maria. Confirmou-me as galinhas e acrescentou esta democrática informação: “A Dona Maria vinha bater às portas, à minha também, e vendia ao bom povo da Calçada da Estrela, os ovinhos de São Bento.” A minha vizinha estrelava, afinal, os ovos das mesmas galinhas, que o senhor Calouste comia mexidos. Os suculentos ovinhos de Salazar.

Publicado no Jornal de Negócios

O talismã de Greta Garbo

Os soldados, que defenderam na fausta selva o nosso infausto Império Colonial, levavam debaixo da farda, colada ao peito, uma medalhinha da virginal Senhora de Fátima. Agora abram a camisa da farda americana de Gilbert Roland, actor de Hollywood que foi, no ecrã, Cisko Kid. Durante a II Guerra Mundial, Gilbert serviu no Air Corps do exército americano e levava colada ao peito a cuequinha que lhe dera Greta Garbo. Assim, sim, ganham-se guerras!

A Garbo, essa esfinge que a Suécia deu ao mundo, comoveu-se ao saber que Roland se alistara: meteu-o na sua cama, levou-o, presumo, ao nirvana, e deu-lhe no fim, como talismã, o par de delicadas cuecas tombadas nesse húmido plaino abandonado que a morna brisa dos dois bem aquecera. Nunca, está claro, a Gilbert lhe raiou a farda o sangue.

Detectaram vagos ecos de Pessoa por aqui? Não foi acaso, que este vosso cronista não cede a facilitismos culturais sensacionalistas! Pergunta pessoana: quantos heterónimos se escondiam atrás dessa Garbo de cara amarrada e de pau?

Um realizador caixa-de-óculos que muito estimo, Rouben Mamoulian, filmou-a na “Rainha Cristina”. Era uma quase adaptação da peça de Strindberg, nesse tempo em que Hollywood fundia, em inspiradora selvajaria erótica, o acme de duas culturas, a da elite europeia e a de massas americana. A rainha fazia-se passar por homem, beijava na boca uma aia, e acabava apaixonada pelo inimigo, na figura de um nobre espanhol, que começou por ser Laurence Olivier, que a Garbo logo despediu ao ensaiarem o primeiro beijo, trocando-o pelo seu ex-amante John Gilbert. O que interessa é a cena final. A rainha e o espanhol fogem num barco, mas duas setas atingem o amado, que lhe morre nos braços. Cadáver deitado no convés, a câmara fecha-se, em close-up, sobre o rosto da rainha.

O que devo fazer?” – perguntou a Garbo ao realizador, antes da cena. Não sei se o aconselhou a Virgem de Fátima ou a morna brisa das cuequinhas de Garbo, que Mamoulian também aspirou, mas eis o que ele lhe disse: “Não faças nada, nada de acting, não penses em nada, não pestanejes sequer, nadinha, como se tivesses uma máscara em cima da cara.

É um dos mais arrebatadores close-ups do cinema: pelo rosto indecifrável de Garbo passa uma procissão de adjectivos e de estados de alma: a amargura da perda, o estoicismo de quem se oferece ao futuro, a serenidade de quem aceita o seu destino e a sua missão. Digam e está lá.

Essa quase heteronímia, atrevo-me a dizer, esquinando leve, levemente, o conceito, é o coração de Greta Garbo. Faça-se a lista dos seus amantes e, ao lado de John Gilbert, de Mamoulian, de Orson Welles, do nosso viril Roland, surge uma lista de mulheres, sendo os seus amores sáficos celebrados em todos os estudos queer. Junto mais um ponto a essa orgia lésbica: os dois papéis que a Garbo mais quereria ter feito no cinema eram, de um lado São Francisco de Assis (com barbas) e, do outro, o Dorian Gray do romance de Oscar Wilde. E sim, a Garbo tem razão, o que ela juntaria de doçura, mistério, beleza e dissipação da beleza, aos dois.

Afronta por afronta, acabemos na cama e com um par de cuecas da Garbo na mão. Fotografada por Cecil Beaton, homossexual retinto e convicto, Garbo descobriu nele o amante perfeito, porventura o único, louva-se Beaton, a dar-lhe rouca e arfante satisfação: “Pelo facto – explica ele – de eu ser inesperadamente violento e ter uma energia desbragada e licenciosa.” Eis a mulher mais bela do mundo: queria estar sozinha, dormiu com homens e mulheres, e só um gay sem freios a levou ao êxtase.

Publicado no Jornal de Negócios

Barba, cabelo e uma valsa de Strauss

Cada vez tenho mais razões para querer ir para o céu. Foi para lá, agora, o Mário Prazeres, o sô Mário, o meu primeiro barbeiro. Deixem-me compará-lo ao melhor dos barbeiros do cinema, a esse “um certo barbeiro judeu”, que fazia a barba aos clientes ao som da Dança Húngara n.º 5 roubada por Brahams aos ciganos húngaros. Esse “um certo barbeiro judeu” era, como sabem melhor do que eu, um tão versátil Charlie Chaplin, que nesse filme, The Great Dictator, é ao mesmo tempo um humilde barbeiro do ghetto e o ditador Adolf Hitler.

Quantas personagens havia em Mário Prazeres, o sô Mário, o meu barbeiro? Na sua barbearia, um rectângulo com duas cadeiras monumentais, as duas paredes mais longas estavam cobertas na totalidade por espelhos. Paralelos, multiplicavam ad infinitum os clientes, cabelos, tesouras e navalha de barba, multiplicação abominável, diria o cego e luminoso Jorge Luís Borges, se tivesse a honra de lá ter sido cliente.

Era múltiplo, também, o sô Mário? Eram os anos dos Beatles, tinha eu 15 ditosas Primaveras, numa cidade, Luanda, onde só havia Verões e Cacimbos. Eu e os meus kambas juvenis vínhamos sentar-nos nas seis cadeiras de espera só para ouvir as conversas dos mais velhos e ler o jornal Província de Angola e a melhor das revistas, o Notícia. O sô Mário corria-nos, com sotaque alentejano, ao fim de meia-hora de leitura: “Bazem daqui, com esse cabelame, a ocupar as cadeiras todas: quem vem cortar o cabelo dá de frosques, não quer ficar à espera!

Jamais me esquecendo do número do Notícia com a fotografia da ampla Vanessa Redgrave nua, nuíssima, água do mar a cobri-la da cintura para baixo, o braço direito sobre os seios omitindo protuberâncias, quero acrescentar que o Província e o Notícia não eram a única literatura dessa barbearia do ameno anti-ghetto que era a Rua Alberto Correia, cruzamento com a Fernando Pessoa, em Luanda.

Um dia, Mário Prazeres entendeu que este infante rondava já a idade de homem e, não consigo dizer se foi no mesmo dia, mostrou-me, arrancados do escondido fundo das gavetas de toalhas imaculadas, o primeiro Avante em papel bíblia que vi e uma revista radiosa com enfermeiras escandinavas, batas sem botões, marquesas e transfusões, que fariam qualquer um desejar cuidados intensivos. Como o barbeiro de L’ Armée des Ombres, de Jean-Pierre Melville – um silencioso Serge Reggiani que escondia, a espuma e pincel de barba, o seu cliente dos esbirros da Gestapo – também o sô Mário, não prescindindo de gulosos prazeres, tinha, nesses tempos de PIDE, o seu lado de barbeiro silencioso e combativo.

E volto a Chaplin, o sô Mário poderia ter cortado cabelos e feito barbas, não com Brahms, mas pelo menos com as valsas de Strauss que ganhou numa troca de LPs comigo. Precisava para as minhas inconfessáveis farras de fim de semana de um álbum de Roberto Carlos, e ele sabia que eu tinha uma raridade, apanhada pelo meu pai no porto de Luanda, um LP de Viena de Áustria em que brilhava Strauss. Aceitei a troca. Talvez agora, no improvável paraíso, ele faça barbas ao passo ternário da valsa, tal como Chaplin na soberba coreografia de barba, Brahms e dança húngara de The Great Dictator. E inspirado, lá da poeira cósmica, já o ouço repetir, neste tempo de reacendido anti-semitismo, o discurso do barbeiro judeu: “Olhem para cima. Foram dadas asas à alma humana e, por fim, eis que começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança, para o futuro, para o futuro glorioso que te pertence a ti, a mim, a todos nós.” Fala, Mário, eu acredito.

Publicado no suplemento Weekend do Jornal de Negócios: sai todas as 6.ªs feiras

São livros, senhores: de Dickens a Freud

os meus livros de Novembro
de um editor anti-amargurado e anti-forreta

Sim, o grande Charles Dickens voltou com um fantasma muito lá de casa. Lembram-se? É O Cântico de Natal e começa com o velho Marley a bater a bota. Bate a bota, mas não se deslarga e, por isso, o quilométrico e verdadeiro título deste livro é Um Cântico de Natal, uma história de fantasmas no Natal, o meu primeiro livro de Novembro.

E peço e não peço desculpa, mas como editor atrevo-me a dizer que sou um anti-Scrooge. Não me acusem de ser «um velho pecador sovina, amargurado, agarrado, sôfrego, forreta, ganancioso». Além de Dickens, ainda tenho mais sete livros para animar as Festas. Boas Festas.

Um deles é para se ler com seriedade e de espírito aberto: Colonialismo, um Juízo Moral, de Nigel Biggar, é uma turbulenta viagem pelo Império Britânico, tão polémica que o primeiro editor inglês o cancelou. Foi a melhor recomendação para eu o publicar. Faz parte da colecção Os Livros Não se Rendem, que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações têm a generosidade de oferecer à Rede Nacional de Bibliotecas Públicas.

Não se chamava cancelamento, mas era exactamente a mesma coisa, e disso nos fala Censura, o Lápis Azul do Silêncio, obra organizada por Ana Aranha, com 20 entrevistas, de Adelino Gomes a Sérgio Godinho, a quem sofreu nos textos e na pele os riscos azuis do lápis censório da ditadura de Salazar e Caetano. Quem nos ajuda a lembrar tudo isto é José Jorge Letria e a Sociedade Portuguesa de Autores, nossos co-editores.

Vindo desse tempo, mas atravessando a nossa democracia, levado pela mão de Mário Soares, Luis Parreirão é o autor (em modo de entrevista) de Razão de Ser, um livro sobre o que mudou em 40 anos, mas sobretudo sobre o que temos de «ousar» mudar para atingirmos a plena dignidade humana, para «ousar» governar, sem ditaduras, um mundo policêntrico. É um livro falado e que fala para o futuro.

A mão do Fundo Cultural da Sociedade Portuguesa de Autores está por trás do olhar sobre Lisboa de Victor Sousa Lopes. O autor deambulou por aí, por praças e jardins, compulsou textos antigos e escreveu O Espaço Ilimitado de Lisboa: Lisboa Esquecida – Lisboa Presente. É um livro que, ah pois, cheira a Lisboa…

Têm sapatinho para mais três? Metam música nisto. Chama-se Histórias de Jazz. E escreveu-o Leonel R. Santos, com uma ilustração altamente cool de Nuno Saraiva na capa. Ali se contam 13 histórias e há sempre um grande músico ou um inesquecível tema a rematar a história. As histórias são inverosímeis – «de amores desesperados, amizade, sexo, sangue, suor e lágrimas, traição, humor e fantástico» – ou seja, a minha vida… ou será a sua?

Este livro ainda cabe no sapatinho, o título é que não: Napoleão na Praia, Um Estratega na Toalha e na Areia, de Richard Fremder, oferece-nos esse insano imperador francês em água de rosas, com um intrigante capítulo que se chama «Caso-me com uma barriga». Eis o que tenho a dizer, tem uma bela capa – very fun – e é bom: informação bem digerida.

Nada fun, mas very, very é Sobre os Sonhos, do velho e saudoso Sigmund Freud que se vem juntar ao catálogo da nova chancela, a Crisântemo, que a Rita Fonseca orienta. Está aqui, em 100 páginas, escrita pela mãozinha do próprio Freud a súmula da sua interpretação dos sonhos. De uma clareza meridiana, estão lá sonhos que não confessarei que podiam ser os meus, já que eu, fonte de irreprimível erotismo e sexualidade salutar, está claro, nem recalco, nem reprimo. Já os sintomas obsessivo-compulsivos…

Adorei e para o ano, diz-me a Rita, vamos publicar mais uma catrefada de bons Freuds. E é com esta promessa, oito livros sobre a mesa, que vos desejo (eu e toda a Guerra e Paz) que vivam as Festas como o resgatado Scrooge, no fim do livrinho de Dickens: «se havia alguém que sabia viver bem o Natal, era ele. Que o mesmo se possa dizer com verdade acerca de nós, de todos nós! E assim, como dizia o pequeno Tim, Que Deus Nos Abençoe a Todos!»

Ia dizer que vos amo, mas talvez seja estar a levar as coisas ligeiramente longe de mais. Um abraço natalício.

Manuel S. Fonseca, editor

Muita faca e algum alguidar

Camilo era, ó se era, uma peça. Já vos falo da sua transumância amorosa com uma freira. Mas agora, assentem o queixo no vosso punho fechado, sentem-se como O Pensador de Rodin, e reflictam: o que se pode esperar de um miúdo órfão e filho de mãe incógnita! Parece conversa de folhetim e coisa de faca e alguidar? Já vos dou a faca e o alguidar.

Camilo Castelo Branco, nascido de descontroladas aventuras amorosas paternas, foi perfilhado pelo pai aristocrata, como filho de mãe incógnita, tendo a omissa mãe morrido tinha Camilo dois aninhos. O pai não demorou muito a ir ter com essa mãe de uma ou várias noites arfantes e Camilo achou-se órfão, mas não coitadinho, aos 9 anos. Criou-o uma tia e a irmã mais velha. Educou-o um padre: muito latim, parlez-vous français e o incêndio erótico que já se vai ver.

Tinha só uns exaltados 16 anos e casou-se com Joaquina Pereira da França, uma menina de 14, filha de lavradores, ali ao lado de Vila Real, lá para Trás-os-Montes. O arrebatamento durou o que tinha de durar e o tufão amoroso que era Camilo, vê-se com uma filha a cargo. Apaixonou-se por uma prima, Patrícia, órfã de mãe, com vocação para canto e piano, que ainda mal chegara à candura de umas 20 doces primaveras. Fugiu com ela para o Porto, mas a mancebia não durou muito, que a mando do pai da moça, que por sua vez era amante da tia de Camilo, acabaram presos na Cadeia da Relação.

Fosse talvez por dormirem juntos, Patricia engravidou, ou seja, Camilo, aos 23 anos, tinha duas filhas. Isto é, uma filha, que a primeira lhe morre, exactamente um ano depois da morte da infausta e abandonada Joaquina, a primeira mulher. Da segunda filha há de cuidar uma freira, sua terceira amante, a quem Camilo recitava versos, ela do lado de lá das grades do convento, grades insuficientes para travar a pujança camiliana.

Pego agora na faca, peguem, por favor, no alguidar. Com esta vida, a luxúria e fuga cheias de andamento, Camilo não tinha um tostão para mandar cantar nem um ceguinho. Acontece, então, em Lisboa, o mais horríssono dos crimes: uma filha mata uma mãe. Não sei quantas facadas, enquanto a pobre gritava “Maria! Não me mates que sou tua mãe”, seguidas de esquartejamento do corpo, espalhando a vil criatura os pedaços da mãe por diferentes lugares de Lisboa. A polícia vem a casa da filha, encontra indícios, descobre uma cabeça enterrada, está a filha sôfrega a comer melancia, e diz “Sim, essa é a cabeça de minha mãe”.

Camilo escreve de rajada, no Porto, para o jornal Eco Popular, um folheto de cordel, o célebre “Maria! Não me mates que sou tua mãe”. Bestseller imediato, com reedições e trinta por uma linha. Camilo, que vivia de redigir crónicas desembestadas em jornais, e ainda não escrevera romances, tem aqui a sua estreia anónima: não assinou o folheto de cordel. E, no entanto, estava ali, em embrião, tudo o que, de amores de perdição e de macabro, Camilo viria a publicar.

Ah, e o gozo que lhe deu receber em cobre a receita desse folheto, de que, espremido, sairia sangue. Os bolsos cheios, as moedas a tilintar sobre a mesa, como ele mesmo contou a um amigo e biógrafo. E agora, deixem-me gostar ainda mais de Camilo. Sob pseudónimo, escreveu – pagavam-lhe para isso – uma crónica a desancar o seu próprio folheto de cordel. Dizia: “Lá vai uma chicotada nestes súcios que racham o público com ‘Maria! Não me mates que sou tua mãe’… A tal Maria José que matou a mãe tem dado bom dinheiro.” Ora aí está o Camilo intelectual a desancar no Camilo bestseller, os bolsos cheios de bom dinheiro.

Publicado no Jornal de Negócios