O mundo grande e muita alto!

Os novos mundos, o grande e o pequeno

São gloriosos os pontapés que o meu neto de dois anos e quatro meses dá no mundo. No mundo grande e no mundo pequeno. Mal seria se eu, como avô, não considerasse o meu neto uma criança sobredotada, um realíssimo génio avant la lettre. Mal começou a balbuciar e logo desatou a dizer os nomes de todos os animais com uma dicção que deixaria embasbacada a senhora dona Glória de Matos, essa actriz de tão límpida pronúncia, que deu aulas de bem falar a Aníbal Cavaco Silva.

Note-se, não foi só dizer com uma perfeição cristalina os nomes, mas sim reconhecê-los no grande globo terrestre insuflável – o mundo grande – que lhe ofereceu, não este circunflexo avô, mas a aguda avó Antónia. Reconhece a águia, minha ternura e preocupação maior, como o leão e a leoa, o tubarão-martelo, o javali, que ele agora, por influência de um desenho animado, a “Bluey”, já chama, em francês “sanglier”, como continua a reconhecer a preguiça, a orca, o guaxinim, que dorme, irredutível em árvores ocas e se banha nos pântanos, e mesmo o pelicano – “O pelicano”, diria branda e degustadamente Marlon Brando, na pele de Vito Corleone, se tivesse ouvido a fruída alegria do meu neto a ver essa grande ave aquática de bico longo.

Esse mesmo gigantesco globo terrestre insuflável, em que aprendeu os nomes dos animais, é a fonte da sua maior alegria física, atestando-lhe vigorosos pontapés em jogo com este exausto avô na sala grande da casa. O meu neto tem um remate de peito de pé já perfeito e delira com duas coisas. Primeiro, quando o mundo vai às alturas e bate no tecto da sala – “Muita alto, avô, muita alto!”, e as graças que eu, ateu, dou a Deus, à Virgem e a São Judas Tadeu pelo belo pé direito da sala. Em segundo lugar, quando eu, brinca na areia de musseque, toco o mundo de chulipa: “Calcanhar, calcanhar”, grita ele e ri e tosse, à beira daquele género de tanta alegria que até choras.

Por facilidade de educação do infante, e protecção da delicada glass menagerie da sala, a avó comprou-lhe um globo terrestre insuflável mais pequeno. É o mundo pequeno. E foi este o primeiro mundo que não resistiu aos pontapés de neto e avô, dos pais e da avó. Uma biqueirada à Otamendi abriu um furo no mundo para espantada decepção do meu neto: “O mundo não salta”, disse ele, e eu a pensar que sim, que às vezes também eu, o mais excitado optimista deste planeta, tenho medo que o mundo não pule nem avance, mesmo nas mãos de sonho do meu aguerrido neto. E eis que, ontem, foi o mundo grande a já não querer saltar. Soprámos no pipo e o ar sai, sei lá bem por onde. Diagnóstico filosófico do meu neto: “Avô, o mundo está vazio!”

Esclareço: o qualificativo acima, aquele “filosófico” que ali plantei, não é acidental ou arbitrário. Um dos jogos familiares que temos é fazer expressões faciais que ensinamos ao nosso candengue: fingimos caras de alegria, caras de tristeza, caras de surpresa. Já o ensinei mesmo a soltar um muxoxo, esse irónico som fino e trocista como uma agulha, que aprendi nos musseques caluandas e que tantas vezes me vem aos lábios quando ouço os alarmismos obscurantistas de Guterres sobre o mundo vazio dele.

Agora, e por causa disso mesmo, decidi ensinar o meu neto a pensar. Primeiro, sentamo-nos e fazemos silêncio os dois. Depois, fechamos as mãos em punho e encostamos um punho a cada maçã do rosto: eis como se pensa, numa atitude e posição que o robusto Auguste Rodin abençoaria, com toda a certeza. E o mundo há de pular e avançar: já vêm, a caminho mais dois globos terrestres, mundo pequeno e mundo grande.

Publicado no Jornal de Negócios

4 thoughts on “O mundo grande e muita alto!”

  1. Que ternura de post. E logo a acabar em pose filosófica. Porque aos pensamentos ainda não chegámos. Mas chegaram eles, neto e avô.

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  2. Virá o momento em que os avós mostrarão ao neto o filme do Charlot encarnando um ditador e a brincar, também ele, com o mundo numa sequência belíssima. Os ditadores gostam de brincar com o mundo.
    É bom ser-se um avô babado 😊

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