Uma bala a divagar

Claudine no filme “The Party”

Dois deuses juntos, era o que eles, em Aspen, eram. E acrescento, viviam num chalé de que, se nos puxar o chinelo para a analogia, o Olimpo seria um mero sucedâneo. Nesse Inverno de 1975/76, a branquíssima Aspen nem era bem ou só Aspen, era mais uma Sodoma e Gomorra moderna. Festas, se chamarmos festas a orgias, montanhas e slaloms e slaloms de drogas: tanta neve como coca. Ali viviam Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, Kevin Costner. E deixem que, na primeira cena em que os apresento, Claudine Longet esteja, aos gritos, a proibir Vladimir “Spider” Sabich de ir a uma festa, à festa do “Best Breast”, a festa do melhor peitinho, traduzo eu, e não estamos, se bem sei, a falar de “barbecues”.

Sabich era um dos mais queridos e lambidos atletas olímpicos, que meia América queria meter na cama. Solteiríssimo, com tanta vocação para o esqui, de que era campeão olímpico, como falta de vocação para a monogamia. Convidara, porém, Claudine, e com Claudine os três filhos dela, a virem viver com ele naquele paradisíaco resort de neve: “Erros meus, má fortuna, amor ardente.”

Mas quem não se apaixonaria pela formosa Claudine? Com aquela suavidade tão “mignonne” da Françoise Hardy de “tous les garçons et les filles”, Claudine começou a dançar em França e, picada pelo deletério sonho americano, viria a ser corista em Las Vegas, onde encontrou o cantor de voz mais mimosa da América, Andy Williams. Diz-se que Andy a conheceu quando Claudine mudava um pneu – nesse tempo, uma arte – e ele parou para a ajudar. É lenda, mas imprima-se a lenda.

O que não é lenda é que tiveram um casamento feliz, que nem o divórcio espatifou, e três filhos. Claudine ganhou fama e eu, em Luanda (1970?), delirei a vê-la em “The Party”. comédia de Blake Edwards, com o famoso Peter Sellers. Claudine cantava uma das suas baladas delicodoces. Ouvia-a Sellers, que interpretava um jovem indiano (ó repugnante cena de apropriação cultural!) caído de pára-quedas na festa onde não conhecia ninguém, causando o caos involuntário, como se fosse o Jacques Tati do “Playtime”. E bem, não era só ouvi-la: o fiozinho de voz enleava os ouvidos de Sellers e ele ia-se retorcendo contra a parede, encostando as coxas como uma menina, as mãos apertadinhas contra o baixo-ventre, numa aflição que está entre o desejo e a urgência de uma aliviada micção.  

Ouviram o tiro? Só há um tiro nesta história, “one shot” como dizia o De Niro de “O Caçador”. Sabich tinha chegado a casa, os três filhos de Claudine andavam pelos jardins do chalé. Ele despira-se e estava de cuecas, na casa de banho, para um duche, quando Claudine dispara o tiro que fará um furinho fatal na pele lisa da barriga dele, indo a pequena bala divagar pelo seu atlético estômago e pelo olímpico pâncreas.

A vida de Sabich e Claudine era então uma montanha-russa de ciúmes, clamores e muitas substâncias. Consta que Sabich se preparava para a deixar. Claudine diria, em tribunal, que foi só um acidente infeliz: pediu a Sabich que lhe explicasse como era a segurança da pistola, mas o dispositivo avariou e ela disparou a única bala na câmara: bang, só um bang. O tribunal acreditou: condenou-a a 30 dias de prisão, que Claudine cumpriu, como a proibida canção que os Rolling Stones lhe dedicaram conta, aos fins de semana. Claudine, logo no julgamento, apaixonou-se pelo seu advogado de defesa, que deixou a mulher e dois filhos, para casar com ela. Vivem, ainda hoje, num chalé, muito perto do chalé em que, um só tiro, morreu o infausto Sabich, namoradinho de meia América.

Publicado no Jornal de Negócios

4 thoughts on “Uma bala a divagar”

  1. Claudine era um borracho e a sua vozinha era mais fatal do que a bala!
    The Party é uma belíssima comédia e, não sendo fã do Sellers,ele faz aqui um papelaço (e marimbo para o politicamente correcto).
    Neste belíssimo texto, ou muito me engano ou caiu uma gralha: em vez de “ouvi-a Sellers…” talvez “ouvia-a Sellers…”. Ou estou enganado?!
    Sorry 🙂

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