A amizade (masculina)

Estes são os gangsters de Coppola

Ninguém percebe nada de amizade masculina, a começar pelos próprios homens. A amizade masculina é uma bagagem que atrapalha qualquer gajo. Como na história do caçador furtivo que traz aos ombros o veado que acabou de abater e lhe aparece o fiscal de caça. O homem nega: “A caçar? Eu? Jamais.” O fiscal aponta para o veado, o caçador dá um salto, surpreendido e assustado, e lança o veado ao chão com um grito, “Ui, raio do bicho!”

Já os mafiosos não têm medo da amizade. No “Cotton Club”, de Francis Coppola, há dois gangsters, o gordinho e afável Owney, e o trombudo e gigantesco Frenchy. Não é só serem leais um ao outro: mesmo que eles não saibam ou finjam não saber, o coração de cada um estremece pelo coração do outro. São mais irmãos do que os irmãos. Um dia, os inimigos raptam Frenchy. Pedem um resgate. Owney, o bonacheirão, consegue salvar Frenchy. Reencontram-se e estão os dois, na casa de banho, naquela intimidade masculina de mudar o líquido às azeitonas. Frenchy tira a Owney o seu belo relógio de bolso. Deita-o ao chão e salta-lhe em cima, partindo-o todo. Owney vermelho de raiva, tem vontade o matar. Mas Frenchy nem o deixa falar: “Meu filho da puta, disseram-me que nem querias pagar 500 dólares para me libertar! Eu por ti pagava uma fortuna.”

O gordinho, apopléctico, grita: “Cabrão, pediram-me 35 mil e eu dei 50 mil dólares. Se fossem 500 mil pagava-os. A merda que fizeste ao meu relógio!” E o brutamontes, soturno, cão raivoso Frenchy abre-se em flor, a sussurrar “50 mil…” Tira do bolso o mais terno dos presentes. Owney abre-o: “Um relógio de platina… minha grande besta.” E é melhor fecharmos os olhos para não vermos o abraço deles.

Como é melhor fecharmos os ouvidos para não ouvir a entusiástica fanfarra de gritos no hospital onde, em “Wings of Eagles”, de John Ford, está internado John Wayne, com uma fractura na coluna. Militar, comandante da marinha, um acidente paralisou-o. Os seus marinheiros vêm vê-lo todos os dias. Escondem das enfermeiras, em bouquets de flores, as garrafas de whisky. Mas sobretudo, estão ali, horas perdidas, a tentar que as cavalares pernas de John Wayne voltem a andar. Têm um mantra: “Eu vou mexer este dedo! Eu vou mexer este dedo!”. Repetem-no dias, meses, um ano a fio, sofridas e infinitas horas seguidas: “Eu vou mexer este dedo!” Mas o dedo, esse abstruso polegar de Wayne, não se mexe. Julgam que estes gajos – buddies, kambas, o que lhe queiram chamar –, esculpidos a guerra, mar e sal, perdem a fé? Até a ukelele eles cantam, “Eu-vou-mexer-esse-dedo!”

E um dia, Wayne, deitado de rabo virado à lua, a cara metida no buraco da marquesa, um espelho ao lado para ver o petrificado dedo, vê que o dedo, como a Terra de Galileu, se moveu um bocadinho. Os gritos do seu sargento do ukelele atroam o hospital. A fé, a alegria masculina sobe pelas paredes acima, beija o céu, certo de ter vencido o inferno.

Eu sei do que falo. Quando estive nos cuidados intensivos, no tempo da estúpida pandemia, no cruel Dezembro de 2020, entre os delírios e o meu solitário mantra “eu vou mexer esse dedo!”, ouvia as vozes dos meus amigos. Quando saí, a minha ressuscitada Antónia disse-me que todos os dias o Pedro Norton e o Manolo Bello telefonavam. Nem era bem telefonar, cantavam, sabendo que eu havia de ouvir um “foda-se, tens de mexer esse dedo!”, e tocavam ukelele como os marinheiros de Wayne. Como já não se usam relógios de bolso de platina, ofereço-lhes esta crónica ligeiramente mariquinhas, de quem continua sem perceber um alho que seja de amizades masculinas.

Publicado no Jornal de Negócios

Este é John Wayne cercado de mimos

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