A mão de Marilyn

Nenhum corpo suporta tanta despesa. É o que qualquer um dirá de Marilyn Monroe por pouco que saiba da atribulada vida dela. Mas não, a frase disse-a eu, em 1980, se bem sei, a propósito da actriz Manuela de Freitas. Ora não é de frases que quero falar, mas sim da mão que nos ajuda quando nada nos promete pão, vinho e rosas.

Ouçam a voz de Ella Fitzgerald. Vinha lá do peito, cristalina como se no peito tivesse uma fonte, embrulhava redonda as palavras numa dicção angelina, tinha ritmo e melodia, ousando improvisos a que nem a agilidade de um Ulisses serve de analogia. E agora vejam, Ella, a cantora negra nascida na Virgínia era amiga da alabastrina Marilyn Monroe. Exagero: mesmo a amizade tem uma génese e faz a sua peregrinação. Marilyn, no filme “Os Homens Preferem as Loiras” ia ser ainda mais loira e ia cantar. O seu agente pô-la a ouvir as canções de Ella Fitzgerald e os ouvidos da actriz apaixonaram-se pela voz dessa vasta e abundante sereia negra. Um dia, em Dezembro de 1954, Ella actuou numa daquelas espeluncas onde costumava cantar, em Los Angeles, e Marilyn veio vê-la. Foi amor à primeira vista e Ella contou a Marilyn que um dos seus sonhos era cantar no Mocambo, esse clube onde vinha jantar e dançar a fina flor de Hollywood, e onde um dia uma esposa indignada espetou um garfo de sobremesa no lóbulo da orelha de Errol Flynn, como já aqui contei.

Marilyn não hesitou um segundo. Conhecia o dono e telefonou-lhe. Ora, o dono do Mocambo não queria contratar Ella. Por ser negra? Fosse como fosse, uma coisa era ele não querer, outra era Marilyn pedir-lhe. Marilyn disse-lhe que se encarregaria de fazer da estreia um triunfo tão grande como as Jornadas Mundiais da Juventude, como se lá estivesse o Papa Francisco. Ela mesma, a futura cantora do “Happy Birthday Mr. President” a John Kennedy, estaria na primeira fila, nos primeiros cinco dias, a ouvir a cantora de “(If You Can’t Sing It) You’ll Have to Swing It”. Estarrecido com os dotes divinatórios, e porventura marianos, de Marilyn, o patrão do Mocambo aceitou e, em Março de 1955, Ella Fitzgerald, cantora negra, arrasou no Mocambo.

Sem a mão de Marilyn, essa mão que segurou a mão de John e Bobby Kennedy – história que hei de contar em breve – teria a carreira de Ella sido a mesma? E volto à minha frase, “nenhum corpo suporta tanta despesa”. Escrevi-a talvez num texto trânsfuga e hoje perdido. Só sei que a escrevi porque a cita o João Bénard no Catálogo de Cinema dos Anos 50. Foi a mão do meu professor de Filosofia Antiga, José Gabriel Trindade dos Santos, que lhe estendeu o meu texto. O Zé Gabriel ficara meu amigo e encantava-se com umas prosas delambidas e presumidas da minha ruralíssima lavra. Se a mão dele não as tivesse passado ao seu amigo Bénard, que outra vida teria sido a minha?

E agora, em vez da lenda, imprimo a verdade. Marilyn deu mesmo a mão a Ella, obrigando o boss do Mocambo a contratá-la. Não assistiu às actuações, mas convocou meia Hollywood para a primeira fila: Sinatra, Judy Garland, Bob Hope, creio que até Marcelo e Carlos Moedas. Na verdade, o Mocambo já tinha uma tradição de cantoras negras. O obstáculo é que Ella era gorda, enorme, e sem charme. Teve de vencer também esse preconceito, a começar pelo Mocambo. No Colorado, uma noite, Marilyn voltou a vê-la. Mandaram Ella entrar pela porta pequena. Marilyn, na porta principal, parou e disse ao dono do clube: “Ou ela entra comigo por aqui, ou vou-me já embora.” E abriu-se às duas, juntas, como se do Paraíso, a porta grande.

Publicado no Jornal de Negócios

2 thoughts on “A mão de Marilyn”

  1. Às vezes, os professores dão uma mão aos bons alunos de quem se tornam próximos e, talvez sabendo, fazem bem a muita gente. Esse Zé Gabriel até era bom professor. Presumo que, se inda anda pelos brasis, ataviado em fato branco e chapéu condigno, continue a função. Ou estará gozando sua reforma/aposentadoria em algum lugar do mundo.

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