A dança é uma doce violência

As gotinhas de sangue no colarinho são as que o garfo de uma mulher valente inflingiram a Errol Flynn

Seria Hitler um dançarino de kuduro? Chaplin interpretou Hitler, no arriscado “O Ditador”, filme que realizou quando o Führer estava em plena ascensão. E o que sei é que o pôs, não a dar umbigadas a um redondo globo mapa-múndi, mas sim nadegadas: Hitler ia de kuduro – ou de cu duro – ao mundo!

Nesse mesmo ano é que, na frívola Hollywood, na Sunset Strip, se fundou o Mocambo, o clube a que os mais célebres actores vinham dançar. Foi aí, pouco depois dessa fundação, que Errol Flynn espetou uma sonora lamparina num comentador radiofónico de fofocas, que fora ao Congresso dizer que os filmes de Hollywood não eram imparciais e eram manipulados pelos produtores judeus, destilando por isso um ódio anti-nazi que punha em perigo a neutralidade americana. O grandessíssimo cabrão.

Flynn arriou-lhe aquela lostra bem aviada e, na sarrafusca, perdeu os seus adorados botões de punho de ouro, o que o deixou a roçar o possesso: os meus botões, os meus botões! Sem sequer olhar para Marlene Dietrich, que estava na mesa ao lado com Jean Gabin (juro, que é verdade), foi buscar uma bela lasca para dançar, e voltou, em passos de Fred Astaire, a parar à frente da mesa do animal: “Ainda aqui estás, verme! Roubaste-me os botões de punho, canalha!” Ainda as últimas letrinhas da palavra canalha iam no ar e já a mão de Flynn enfiava uma estrepitosa segunda lambada ao famoso radialista de que não direi o nome. Mas desta vez a mulher do ofendido e vergastado reage e tenta espetar o garfo que tinha na mão num dos belos olhos de Flynn. Ora, Flynn não era só admirado por ter um apetrecho, chamemos-lhe assim, de ultrajante dimensão, que tirava para fora da braguilha, arrancando com ele ao piano a doce simplicidade de um dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, mas era também admirado por esconder dentro de si um espadachim, e foi esse espadachim interior que se desviou, célere, fazendo com que o garfo da nobre e indignada senhora falhasse o olho e fosse enterrar-se no lóbulo da orelha do actor aventureiro.

 O que terá escaldado o espírito de Flynn? Bastará invocar o seu anti-nazismo, quando se sabe que viria depois, certamente sem fundamento, a ser acusado de suspeita espionagem? Ou terá sido o facto de nessa noite o sobredotado Flynn estar a celebrar, deprimido, o seu divórcio da bela Lili Damita, que aprendera a dançar em Lisboa?

A verdade é que também a dança esconde em si a silhueta ágil e fulminante da violência. Bastaria lembrar a umbigada da masemba, esse choque tropical de almas, se tivermos uma noção muito côncavo-convexa do conceito de alma. Mas mesmo na puritana América, e dou como exemplo a sedutora Cyd Charisse, quando levava as soberbas pernas a dançar com Fred Astaire ou com Gene Kelly, esses bailarinos maiores do século xx, não vinha de volta da mesma maneira. O seu segundo marido inspeccionava-lhe as pernas e se vinham com marcadas nódoas negras, sabia que ela tinha dançado com Kelly, se vinham mais macias do que o gole de um aveludado Sauternes depois do foie gras, era certo que as inenarráveis e altíssimas pernas de Charisse se tinham enlaçado apenas e só às inefáveis pernas de Astaire.

E agora vejam, vieram os jornalistas, Errol Flynn senta-se com eles à mesa, no bar ao lado do Mocambo, mostra-lhes o lóbulo da orelha furado, o sangue no colarinho e ri-se da aventura, não sem fazer um elogio à mulher do canalha. “Uma mulher valente, é o que tenho a dizer. Mas há uma coisa; não percebe nada de etiqueta. Espetou-me com o garfo da sobremesa, quando devia ter usado o garfo da carne.”

Publicado no Jornal de Negócios

6 thoughts on “A dança é uma doce violência”

  1. O pai era professor e biólogo. O meu avô conheceu- num congresso em Londres. Num baile desse cingresso a minha mãe, que acompanara o seu pai, dançou com o Flynn sr. Sei que teria preferido valsar com o jr!…

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  2. Manuel. Foram só erros ortográficos de fazer corar o maldito Acordo. Não é do calor mas do tablet…
    Será que E. Flynn inaugurou nessa noite a era dos piercings?! 🙂

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