A putidade dos iconoclastas

Perante o vendaval excrementício e as toneladas de putidade só penso: que desperdício! Falo de muitas das reacções de alguma da que poderia ser a nossa melhor intelectualidade. Fizeram alguns estudos, têm uma escrita prendada, mas em vez da bondade de que foram exemplo o meu professor e padre Manuel Antunes ou Eduardo Lourenço, tocou-lhes a carreta do ressabiamento. Ressentidos, atolam-se em manobras de guerrilha no lodo da mesquinhez.

De que falo? Falo da reacção pavloviana ao cristianismo, no que deles li nas Jornadas da Juventude. O tutano encefálico desses “comentadores” resfolega ódio. Martirizados pela vista da cruz católica e pela suave humanidade do Papa star, berram em jornais e nas redes sociais uma empertigada indignação, bordada com o cuspo de uma superioridade intelectual e moral que derrama o mais escaldante desprezo pela turba, como os sitiados medievais derramavam azeite a ferver sobre o inimigo.

Educado no catolicismo, sou hoje no mínimo um agnóstico; tendo passado brevemente pelo marxismo-leninismo-maoismo, sou hoje, também, um órfão ideológico, ciente de que a seita a que pertenci não se coibiu, onde chegou ao poder, de torturar e de gerar campos de concentração. Também muitos destes apóstolos do desprezo, passaram por uma ou mesmo pelas duas experiências. Mas a orfandade ideológica parece mergulhá-los num hediondo lago de hipervalorização do sujo e do negativo, num ódio a si mesmos que se manifesta na rejeição da (nossa) civilização.

É preciso estar-se na mais reles malignidade para não conceder, talvez agradecer, ao legado do cristianismo, ao melhor que nos deu: a afirmação da pessoa humana, o amor ao outro, mesmo ao inimigo, a aceitação do estrangeiro, o perdão expresso no sacrifício de Cristo, que pretendia, antropologicamente falando, interromper o ciclo de vingança e violência das civilizações anteriores. Leia-se René Girard.

Que historicamente os cristãos tenham também sido sacanas, inquisitoriais, criminosos e esclavagistas, esse livro negro não desmente o bem fundado das suas bem-aventuranças, como o ímpio rol dos crimes comunistas, os maiores do século XX, a par dos nazis, da ignóbil tortura aos hediondos gulags, não invalida que o desejo de igualdade, a vontade de desalienação e de felicidade, que subjaz ao Manifesto de Marx, seja um bem cultural precioso.

Volto ao início: acabrunha ver pessoas com talento, alguns estudos (julgo), deliciadas a costurar palas asininas. O que os leva a entregarem-se a um pensamento anão? Mesmo na crítica à criação de outros, o prazer deles é morder canelas. Com um fiozinho de sangue nos dentes, abocanham um poema ou romance falhado, e ficam, deliciados, a verter enxofre, apertando os torniquetes inquisitoriais, a virem-se com tudo o que conseguem fazer doer: no fim, ficam sentados sobre a dor e o esterco que sucede à dor, como a hiena sobre a vítima apodrecida.

Ah, não invoquem a tradição iconoclástica de um Cesariny ou de um Sena. Para dar só um exemplo, os ensaios de Jorge de Sena estão cheios de compreensão e de amor e, sobretudo, de um rigor que exige um trabalho aturado, aliado a uma humaníssima e larga visão da civilização, das suas mais miseráveis falhas aos mais gloriosos êxtases. E nas “Metamorfoses” e na “Arte da Música” a poesia dele faz o que falta a estes papadores de alpista: oferece um diálogo com a arte, muita dela cristã, numa criação que transfigura e faz de cada leitor um sobre-humano: ali, ao lado dos deuses.

Quando forem criadores assim, sejam então iconoclastas.  

Publicado no Jornal de Negócios

6 thoughts on “A putidade dos iconoclastas”

  1. Oh senhor, tanto fel! Que lhe deu?!
    Há os que atacam o evento desabridamente, quem o faça mansamente, quem mudamente se faça ouvir e também há a beatice que deve detestar este Papa mas estavam lá todos para a fotografia. Gosto de Francisco, gostava que fizesse mais do que consegue e o deixam e não ligo à religião. Vacinei-me.
    Christopher Hitchens, ateu confesso, aponta falhas:

    …e com razão.
    Boas férias Manel! Vivó cinema! Vivó Sena! Vivó Cesariny que agora se festeja!

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      1. Ana,
        acho que tresleu o que eu disse. Eu não sou católico. Sou um agnóstico ou ateu. Mas, tal como Pasolini – e o exemplo é seu – guardo o que de melhor o cristianismo nos deu, filosófica, ética e esteticamente. Por isso, o Pasolini fez o mais belo filme sobre Cristo de que há memória. E, por isso, também, boa parte da obra do Saramago é devedora, nos seus fundamentos éticos, do pensamento cristão, até mesmo (ou sobretudo) quando com com ele polemiza.
        Esqueça lá isso dos nojos…

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    1. Olá Gonçalo, obrigado pelo comentário. Garanto-lhe que estou menos azedo do que a si lhe parece 🙂 Mas também não se pode ser sempre de mel.
      Eu estou-me pessoalmente nas tintas para a religião confessional, e julgo que o Gonçalo percebeu isso. Não me estou nas tintas para um património intelectual, filosófico e estético. Ora o que o (admirável, diga-se) Hitchens faz nas suas diatribes anti-religiosas é esquecer esse património que, no fundo, impregna o próprio pensamento dele.
      Boas férias.

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  2. Francisco é um homem bom. E a sua bondade conquista. O resto são as bocas do mundo que temos. Pois se delas nem a igreja está isenta…
    Não sou muito ligada à intelectualidade portuguesa, portanto não me dei ao trabalho de ouvi-los e li o menos que pude. Mas ouvi o papa, pessoa sábia e simples que trouxe palavras de bom senso, amor e atenção aos que dela precisam mais. Não podemos iludir a herança católica e que ela nos marca, queiramos ou não. Podemos ser ateus, mudar de religião, mas não deixamos de a ter herdado. E estou como o Manuel, sou grata pelo que de bom criou em mim. Tenho consciência do quanto a instituição errou ao longo dos tempos, mas também do bem que Francisco representa.

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    1. Só me consigo lembrar destes belos versos de M. S. Lourenço:

      «Senhor, que os nossos lábios sejam abertos com
      fogo ou o carvão em brasa, e que as nossas mãos sejam
      a habitação dos espíritos divididos e reunidos.»

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