
O tiro. Esse tiro solitário, inolvidável, é a única coisa que tenho em comum com Vincent Van Gogh. Uma diferença: quando levei o meu tiro, ainda eu tinha as duas orelhas; ora, o tiro de Vincent já só o apanha com uma.
Essa orelha, que Van Gog decepara com uma lâmina de barbear – uma boa lâmina do século XIX, faço notar – levou-a o pintor, como oferta natalícia, embrulhada num pano fino, talvez uma folha de azevinho de adorno, a Gabrielle, a criada do bordel de Arles. E não fora por causa dessa criada, que tinha uma pasmosa cicatriz no braço, feita por um cão feroz, que surgira a disputa com outro pintor, Paul Gauguin.
Van Gogh e Gauguin partilhavam, em Arles, na solaríssima Côte d’Azur, a mesma casa. Partilhavam também o mesmo bordel e, no mesmo bordel, a mesma prostituta. Vejam o tão pequenino e cerrado mundo em que habitavam dois dos maiores génios da pintura: mesma vilória, mesma casa, mesmo bordel, mesma doce puta. Apaixonaram-se, não um pelo outro, o que sempre esteticamente estiveram, mas pela ternura generosa de uma das moças, que morava na que eles chamavam “a rua das raparigas gentis”.
A solidão afectiva cria monstros? Eu diria que cria anjos. Talvez quisessem casar-se com ela! Os dois? E lembro o que dizia Van Gogh, na única carta escrita a meias a outro pintor amigo: “Gauguin é uma criatura pura com os instintos de uma besta selvagem… com ele, sangue e sexo prevalecem sobre a ambição.” Em conflito, Gauguin, o animal selvagem, fugiu do alucinado Van Gogh mergulhando-o na mais deplorável e crassa solidão. E peço desculpa, devia ter dito solitude, que é a sensação de um homem já ser só uma dolorosa agulha a pairar no vazio.
Foi o irmão Theo que arrancou Vincent das garras da depressão. Trouxe-o para Auvers-sur-Oise, perto de Paris, pondo-o ao pé de um médico amigo, o doutor Gachet. Mas que pode um médico amigo contra a tentação de uma pistola?
Volto ao meu tiro. Ia fazer 15 anos e foi o tiro da pulposa plenitude. Havia um comboio de vida, risos no céu como planadores, barcos inteiros de alegria, ruas de raparigas gentis, à minha volta. E uma espingarda. Era só uma espingarda de chumbos, a Diana 27 da minha adolescência. Havia um jogo: passar a mão veloz à frente do cano antes de cada tiro. E houve um chumbo arguto, vivaço, cheio de sentido de humor, que olhou para a minha mão como a lâmina para a orelha de Van Gogh. Entrou-me pela palma de mão esquerda e ficou quase a sair, um insubordinado relevo na pele das costas.
O tiro de Van Gogh entrou-lhe pelo peito e foi alojar-se perto da coluna vertebral. Viera para o campo, com a sua mala de artista. Tinha 37 anos, em 1890, e não foi para pintar que se deixou deslizar pela paisagem. Na mala, um revólver. Não vendera ainda senão um quadro. Dependia do irmão, que o sustentava, e que tivera agora um filho. Os 37 anos de Van Gog pesam como uma montanha sobre quem ama: a morte parece-lhe ter o rosto de uma rapariga gentil. Aponta a pistola ao coração e dispara. Mas a fina e precisa mão que manobra o pincel é tosca a lidar com a pistola. O tiro falha. Caminha até ao albergue onde vive. Descobrem-no à noite, tombado na cama, a camisa em sangue, um brando sussurro na voz: “Quis matar-me. Falhei!”
Sofre durante dois dias, até que Theo, o irmão, tão fraterno como o melhor amigo, chega. Vincent, com um olhar de noite estrelada (ou seria com um olhar de campo de trigo com corvos?) ainda lhe diz: “Falhei outra vez!”
Morre, então, dois depois de ter, a 27 de Julho, atirado ao próprio coração. Outra indecifrável coincidência: é o meu dia de anos.
Publicado no Jornal de Negócios
Van Gogh é um dos meus favoritos. Um dia, no princípio dos anos 90, quando vivia perto de Paris, resolvi ir até Auvers-sur-Oise. Almocei no Auberge Ravoux, não visitei o quarto do pintor porque estava pejado de japoneses. Passei ao lado da Igreja, estava a decorrer a missa e fui até ao cemitério onde repousam lado a lado os dois irmãos; lá deixei as pedrinhas da praxe; depois fui até à casa-museu do Dr. Gachet; já não tive tempo de ir ao Museu do Absinto. Não tenho fotografias, apenas memória.
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Estas suas memórias já são uma boa fotografia.
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Que duas histórias bonitas. E reais.
Que, com ou sem orelha, Van Gogh salienta-se na minha preferência. Qualquer sua noite estrelada, um girassol descontente, um campo de trigo a resplender, me serve mais diferentemente que a Primavera de Botticelli perante a qual desconfio que fiquei vesga de veneração.
E é isto. Tenha um bom dia.
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E uma boa noite. Estrelada.
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