O riso de Salman Rushdie

o riso de dois amigos

O povo oprimido engana-se muitas vezes, o amigo não. Vou já continuar, mas antes preciso de falar da solidão. Foi numa solidão amena que Salman Rushdie escreveu um romance, “Os Versículos Satânicos”.  Publicou-o em Setembro de 1988, e pergunto-me em que solidão o não leu o ayatollah Khomeini. Talvez tenha adormecido e o livro tenha deslizado para o seu fofo tapete: sem som e sem fúria. Mas alguém lhe falou do retrato que os “Versículos” davam de Maomé, ou disseram-lhe que talvez fosse ele mesmo, Khomeini, o imã do capítulo IV, que vem, do exílio, incitar um povo à revolta, desgraçando-o.

Eis o que, em nome do provo oprimido, fez Khomeini: mandou matar Rushdie, romancista indiano de origem islâmica, no Dia dos Namorados, a 14 de Fevereiro de 1987. Ou seja, e porque os povos oprimidos não mandam matar ninguém, lançou-lhe uma fatwa, forma de mandatar e abençoar todos os devotos para executarem, à faca, a tiro ou à bomba o indiano ímpio.

Vejam agora a solidão de Rushdie. Estava no funeral de um consumado transumante, o escritor Bruce Chatwin, seu amigo do peito. Um funeral é já uma amarga pílula de solidão, esquinas tapadas pelo pálido rosto da morte. Mas chega a fatwa e todos, mesmo os pálidos rostos da morte, se apressam a abandonar Rushdie. À sua volta, refém de uma fatwa Godot, instala-se uma solidão gelada e cósmica. Ninguém, nos intelectuais pares de Rushdie, nem à direita ou sequer à esquerda, veio com o conforto de um aceno, uma singela chávena de chá.

E minto. Veio o amigo. Chamava-se Christopher Hitchens e pôs o seu corpo à frente do corpo de Rushdie. Diz Rushdie, no seu belo “Linguagens da Verdade”, que a tradução de Isabel Lucas faz ainda mais fácil de ler, que todos se enganaram quando disseram que Hitchens era seu amigo íntimo e por isso o defendia: “A verdade é que ele se tornou meu amigo íntimo porque queria defender-me.”

Chris Hitchens já morreu, mas em vida, à defesa sem reservas da liberdade artística de Rushdie, juntou mais mil batalhas: foi de esquerda e foi de direita, tentando seguir sempre a verdade, consciente de que a verdade, a ética e a beleza, umas vezes são de esquerda, outras de direita. As razões de Rushdie, o seu combate ao fanatismo e a esta coetânea e parva ideia da “política de ofensas”, a sua defesa da liberdade e do humor, tiveram em Hitchens um espelho clarificador. Hitchens defendeu-o, hospedou-o em sua casa, levou-o mesmo a um encontro com o presidente americano. Sem medo, Hitchens arriscou, por fraternidade, converter-se num alvo do ódio sectário desses aiatolas que a cada novo Dia dos Namorados, se bem sei, mandavam a Rushdie um postal a recordar que lhe cortariam a garganta ou lhe furariam o coração.

Como é que se agradece a um amigo assim, ao amigo íntimo? Eu lembro a amizade de dois cómicos, Jerry Lewis e Charlie Chaplin. Ficaram íntimos e já Chaplin era mais velho do que três aiatolas juntos, Jerry veio dar um espectáculo a Paris. Estava lá a Europa das artes em peso, mas Jerry não viu Chaplin. Soube depois, em lágrimas, que Chaplin viera, mas se escondera junto ao controle de luzes: não quis ser visto para não roubar protagonismo ao amigo íntimo.

Rushdie, na última vez que jantou com Hitchens, e sabia que era a última – o cancro de Hitchens já pronto a roubá-lo –, foi com outro amigo, o poeta James Fenton, e fizeram rir Hitchens. Fizeram de Jerry e de Charlot, como se fossem adolescentes e a vida estivesse ali em flor, frescos e doces versículos divinos prontos a ser chupados e saboreados. O riso é a raiz da amizade.

Publicado no Jornal de Negócios

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