

“Sou o presidente! Quero entrar!” Os corpanzis do Grave e do Gigante empertigaram-se e ripostaram curto e cerce: “Tem bilhete? É que se não tem bilhete, não entra!” Esse presidente da Câmara Municipal de Lisboa não era nem o gentil Carlos Moedas, nem o dinâmico António Costa. Era o lendário Krus Abecassis e queria impedir a exibição do filme “Je Vous Salue Marie”, uma peça mais lírica do que iconoclasta do falecido Godard. Sem bilhete, Abecassis não entrou. Lá dentro, na sala, não diria que a plateia fluía e refluía num arraial de porrada, mas havia empurrões, gritos, choros e polícias de cassetete no ar.
Uns gentis jovens católicos tentavam acabar com a sessão e uns reformados cineclubistas de saudoso coração comunista ajudavam a polícia a caçar os putos de rebeldia fundamentalista: “É aquele. E apanhe aquele, senhor guarda!”. Os putos, com um olhar a faiscar de desdém, chamavam-lhes “seus pides”.
O que quero dizer é que esse mundo invertido era a natureza intrínseca da Cinemateca do João Bénard e do Luís de Pina, nos anos 80. A adolescência da Cinemateca foram esses anos heróicos que nimbavam, diga-se, o coração de cada um dos funcionários.
Havia um par amoroso, com o mesmo amor que unia Jack Lemmon e Walter Matthau nos filmes de Billy Wilder: eram o senhor Gil, motorista de raízes malandras e alfacinhas, e o senhor Alberto, suave príncipe majestoso de Cabinda, responsável pela manutenção. Formavam a cálida e langorosa simbiose luso-africana. “Ó senhor Alberto, estão três lâmpadas fundidas na sala de cinema!” O senhor Alberto olhava, lançava um fundo suspiro e sussurrava vogais e consoantes num arrasto lento: “Uiiii, issso agora…” Era impossível não amar o senhor Alberto.
O senhor Gil era vivo e ladino. Um dia, quase Natal – contou-me a Antónia, minha mulher –, o Gil conduzia o Bénard. Fez conversa falando da chuvada e da ventania que tinha feito essa noite. O Bénard tinha a cabeça, sei lá, na Anna Karina ou na Marilyn, e nada de troco, de modo que o senhor Gil se calou. Nesse silêncio pré-natalício o carro entra na praça de Londres e o Bénard, arregala os olhos de espanto: “Ó sô Gil, deve ter sido uma tempestade de Adamastor. Olhe para estas árvores caídas por todo o lado.” O Gil ia tendo um ataque: “Sôtor, sôtor, quais árvores caídas, isso são os pinheiros de Natal à venda…”
Saí da Cinemateca e levei comigo, para a SIC, o Chico Grave e, em part-time, o Cintra Ferreira. Com eles, eu, que nunca fumei, gostava de chupar uns havanos, os Partagas série D n.º 4, que eram então o supra-sumo. Eles olhavam-me com carinho e, vá lá, condescendência: “Eh pá, este gajo nem fumar sabe!”
Só uma vez tirei o Grave do sério. Ele queria ficar com um carro meu. Decidi vender-lhe o popó e fixei na minha cabeça um preço. Fomos almoçar – era sempre ao domingo. Ele fez uma oferta, 14 mil. “Vai-te lixar, Chico, nem penses”, cortei logo. “Lá estás tu, com a mania que és capitalista”, gritou a luta de classes que lhe morava no ventrículo esquerdo. “Ah, disse-lhe, não julgues que me assustas. 14 é que não!” “Ok, ok, quanto é que pedes?”. “Quero 10 mil”, disse-lhe eu. Ele ia morrendo de confusão, por detestar favores: pagou-me o almoço, está claro. Eram, o Grave e o Cintra, brutos, grandes, masculinos, duas peças de cristal. Adoravam filmes e livros. Quando foram de transumância para o céu, agarrei nas gordíssimas bibliotecas de cada um deles e doei-as (por ordem do Cintra e obedecendo aos herdeiros do Chico) à Biblioteca de Samora Correia. Estão lá, quase portas contíguas, o Grave e o Cintra, juntos na terra como agora no céu.
Publicado no Jornal de Negócios
Um boné na cabeça, casaco posto e livros/papelada debaixo do braço. A imagem de sempre que guardo do Cintra. E o aparelho no ouvido, claro. Cinemateca de gratas recordações, senhor Abecassis de péssimas…
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Bela imagem, a do boné!
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Eu estive lá nessa sessão mas do lado de fora a apreciar o “espectáculo” do Abecassis, não estava interessado nesse filme do Godard! Ainda frequento a espaços a Cinemateca, lembro-me bem do Cintra, especialista do “noir” e dos westerns; aliás, devo ser dos mais antigos frequentadores; comecei em 1967, por acaso; andava eu a passear pelos Restauradores quando á porta do que é hoje a Cinemateca Júnior estava um funcionário a distribuir convites para a sessão da noite, devia ser Outubro ou Novembro; predominavam os filmes mudos: Murnau, Lumiére, mas vi lá também Bergman, King Vidor etc. e as folhas eram em papel couché; é claro, que a temporada não demorava mais que um mês e foi assim que me tornei um amigo da Cinemateca!
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Fui eu que criei os “Amigos da Cinemateca” 🙂
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Lembro-me de antigas postagens suas falando dos transumantes e da biblioteca de Samora Correia. O que a gente guarda Santo Deus. Eu que não os conheci e nunca fui a Samora Correia.
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É de guardar, é de guardar, eram bichos raros
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