A rã inchada

Já tinha saudades de trazer aqui uma das crónicas que publico todas as semanas no Weekend do Jornal de Negócios. Há quase um ano que estão a secar como o bacalhau, sem virem aqui à minha Página Negra. Esta, fresquinha e acabada de publicar na última semana, lembrou-me que há 30 anos, no dia 1 de Abril, eu entrava na SIC, no mesmo dia em que começou o José Alberto Bastos e Silva e o Jorge Marques. Fui o 11.º. Seriamos depois 300. Foi a minha viagem espacial.

Qualquer um pode inchar, desculpar-se-á a rã de La Fontaine. E ainda antes de passar ao astronauta que inchou, lembro-me que, nesse tempo em que os animais delicadamente falavam e eu fui director de programas da SIC, me auto-louvei pública e clamorosamente por ter, num dado mês, recuperado a liderança das audiências que tínhamos perdido um ano antes para a TVI. José Eduardo Moniz, meu concorrente na TVI e a quem hoje estimo e me deve, ou eu a ele, um almoço, com a fina ironia de quem não gosta de perder, disse então que, se me tocassem com um alfinete, eu rebentaria. 

Ou seja, eu era, em Carnaxide, a rã inchada de La Fontaine. Agora vejam, e se a rã fosse um astronauta? Tudo se passou num tempo em que não só os animais falavam, como os humanos cacarejavam. Eram os anos 60 e não me esqueço que, nesses ténues e longínquos anos, os soviéticos pareciam estar sempre um passo à frente dos yankees na corrida cósmica. O russo Gagarine fora o primeiro humano a sair da então encantadora atmosfera terrestre. E agora, em 1965, a nave Voskhod 2, preparava-se, a 18 de Março, para deixar a Terra e ser palco de um cometimento mais circense do que caminhar no arame entre dois prédios da 5.ª Avenida.

 Dois astronautas tripulavam a Voskhod 2 e um deles, Aleksei Leonov, seria o primeiro humano a sair de uma nave e a pairar, caminhar, levitar, enfim, o que se queira dizer, no espaço. Adiante: a Voskhod 2 já está lá em cima, por onde andarão os invisíveis extra-terrestres, anjos e demónios. É então que, com um fato espacial imponente, Aleksei sai por uma das escotilhas e, pela primeira vez na história da sofrida humanidade, se não contarmos com Ícaro que queimou as asas ao aproximar-se do sol, um homem caminha ou deambula no espaço… neste caso o homem soviético deixando o homem yankee a chuchar em qualquer coisa, talvez no dedo.

Sucede que, cercado pela hiperbólica imensidão, soprado quiçá pelo imensurável silêncio galáctico, Aleksei Leonov começou a inchar. Em doze minutos, Aleksei era já a inchada representação da rã de La Fontaine no espaço cósmico. Uma excessiva pressurização do fato espacial, dirão depois os especialistas soviéticos. O problema é que Aleksei, para voltar à nave, não cabia já na escotilha por onde saíra.

Diz o povo que “com o animal não lutes e o alheio não furtes”, mas também é verdade que o povo diz tudo e o seu contrário. O soviético Aleksei, durante 15 minutos aflitivos, tendo já furtado ao alheio espaço a sua solidão, não quis saber do que diz o povo e lutou mesmo contra a rã que lhe enchia o fato. Conseguiu, em acção arriscada, despressurizar em parte o escafandro, e entrou ao contrário, cabeça para a frente, na escotilha de acesso à nave, onde depois, com herculana valentia, teve de dar uma impossível volta sobre si mesmo para conseguir fechar a escotilha aberta para o vazio cósmico e poder regressar à uterina nave de onde saíra.

Aleksei, com o recato dos heróis, não soltou um queixume. Os técnicos soviéticos, na Terra, perceberam as dificuldades e a angústia. Tinha na boca uma cápsula de veneno que deveria morder e engolir se ficasse preso no espaço, para evitar uma morte lenta e horrível.

O regresso à Terra ia matando os dois pilotos que aterraram a quase 400 quilómetros do lugar previsto, na Sibéria, com 30 graus abaixo de zero, entre ursos e lobos cheios de apetite, a quem não cairia mal uma rã inchada. E, ainda assim, da sua boca só o ouviram, depois, dizer: “Creio que nunca soube o que significava a palavra ‘redondo’ antes de ver a Terra do espaço!”

2 thoughts on “A rã inchada”

  1. As coisas que o Manuel sabe. É bom que as conte em lugares de muitos olhos a lê-las, encerram sempre uma lição para quem quiser tomá-la. Esta é exemplar.

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