Um inédito de William Faulkner

“The Prodigal Son” é um conto de William Faulkner. Misteriosamente banido da sua bibliografia, publicou-se em 1941, na revista Story, e continua inédito em livro. Quase nenhum comentador se lhe refere e só voltou a ser impresso, em 2005, numa revista universitária americana, a Prism, logo extinta. Salvo melhor informação, a “Página Negra” dá  a conhecer, pela primeira vez em Portugal, este quase inédito de Faulkner.

Faulkner

Sem a dissimulação de Ulisses, Henry, um negro do Mississipi, regressa a casa com o cansaço de quem viveu o que tinha a viver. Elegância discreta, o físico de um guerreiro, olhar em paz, o homem vem acertar o tempo físico com o tempo sentimental.

Mom”, Henry said, astonished to talk as sweet as he had ever heard his voice speak to a woman. The old woman’s face turned around, blank eyes looking for the human sound above the furious  storm standing outside her door.” *

Assim começa “The Prodigal Son”, “short story” quase inédita de William Faulkner.

Henry Worsham Beauchamp não é uma nova personagem de Faulkner. Está em duas outras “shorts”. Personagem abundante em “The Fire and the Hearth”, a sua clamorosa ausência é uma das chaves dramáticas de “Go Down Moses”. Estas “shorts” são duas das sete que constituem o livro a que a última, “Go Down Moses”, deu o título. Faulkner considerava-o um autêntico romance, semelhante, na estrutura a-cronológica e na narração disruptiva, a outras obras suas **.

Dos setes contos desse romance, Faulkner afirmou que “o tema genérico era a relação entre pessoas de raça branca e negra.” A figura seminal (entenda-se o termo à letra) é um patriarca, Lucius Quintus Carothers McCaslin Beauchamp, de quem, em linha legítima e ilegítima, descendem os proprietários brancos McCaslin e os escravos Beauchamp, depois libertos. São essas as duas famílias cujas exacerbadas peripécias o romance espelha e recria, do final da escravatura no século XIX até às dores da desagregação dos anos 40. Os McCaslin e os Beauchamp partilham um destino de decadência, a mesma plantação no mítico Yoknapatawpha, igual sentimento telúrico.

Sabe-se que Faulkner escreveu “The Prodigal Son” depois do conto “Go Down Moses” onde o nome de Henry nunca é pronunciado. Mas Henry é a personagem que falta nessa agónica pequena história de um herói, Samuel Worsham Beauchamp, que conhecemos nos dois primeiros parágrafos – “camisa e calças a condizer, da mesma flanela cor de gazela” – para nunca mais o voltarmos a ver, a não ser no final, fechado no caixão do seu enterro a que Molly Worsham Beauchamp, a avó, preside.

Samuel está condenado à morte por ter assassinado um polícia branco. “Pais?’” pergunta-lhe um jovem burocrata. “Claro. Dois. Mas não me lembro deles. Foi a minha avó que me criou.” Ouvimo-lo, e Samuel já não voltará a falar. É a voz de Molly, Antígona negra, que nos guia no resgate do seu cadáver ao Faraó *** e na dignidade ritual do funeral. Entre Samuel e Molly, o elo que falta, esse “não me lembro”, última palavra de um condenado, é Henry, o seu pai ****.

As razões da ausência escondem-se noutro conto, “The Fire and the Hearth”. Henry é o filho de Lucas e de Molly Beauchamp. Nasceu quando nasceu Roth, filho dos patrões brancos, a quem a mãe morre no parto. Molly amamenta Roth e Henry, que crescem juntos, fraternos. Aquecem-se ao mesmo fogo, à mesma lareira da casa negra, até Roth acarinhar nele o verme sulista da branca supremacia da pele. Recusa então partilhar com Henry o beliche, a refeição.

Mais tarde, arrepende-se de ter renegado a pele negra, a primeira que os seus olhos viram quando, sôfrego, bebia o que lhe era leite materno. Quer regressar ao mesmo fogo, à mesma lareira: “I’m going to eat supper with you all tonight”. “Course you is” responde a doce resignação de Molly. Mas nem Lucas, o marido de Molly, nem Henry, o irmão de leite, se sentam já à mesa com ele. “Are you ashamed to eat when I eat?” indigna-se Roth. Henry olha-o com uma serenidade destituída de amargura: “I aint shamed of nobody. Not even me.” Esse momento fratricida, a segurança dessa resposta, contêm já todo o conto que “The Prodigal Son” virá a ser.

A odisseia de Henry começou naquele confronto. Terminará em “The Prodigal Son”. Regressa numa noite de tormenta para encontrar a mãe cega. Traz na mão o mesmo torrão de açúcar que Roth, durante os anos da sua ausência, oferecia à velha Molly, nas visitas que nunca deixou de lhe fazer. “You ain’t got no teeth left but you can still gum it“, conforta-a Henry, repetindo o que já Lucas, o marido, lhe dissera.

Em quinze páginas, Henry e Molly preenchem as perplexidades que os sete contos de “Go Down Moses” possam admitir. Henry recorda a fuga após a morte da sua mulher no parto de Samuel, o filho, infausta rima com a morte da mãe no parto de Roth: I was sick in the mind then. Bad sick. I needs my wife. Dont even got up to go to church on Sunday. How to God could I raise my nigger hand against the Lord.

Henry preenche a ausência de 30 anos, contando a Molly como imitou Moisés ***** e conduziu o seu povo, que é só ele mesmo, através das maquinações e armadilhas dos sicários do Faraó. I am more than a man, Molly”. Then he told her he learned with his own eyes that they were no heroes. This people his father roared “I am a nigger, but I’m a man too” had no reason for pride in his forbears nor hope for it in his descendants.

Que razões levaram Faulkner a excluir “The Prodigal Son” do romance que são as setes histórias de “Go Down Moses”? Entre 1940 e 1941, os contos saíram nas revistas Atlantic Monthly, Harper’s e Story. Nesta última publicou “The Prodigal Son”. Consultando, na Princeton University Library, os arquivos da extinta Story, encontra-se o original na Box 36, Folder 33. Daí não voltou a sair a não ser quando a Prism, revista literária daquela universidade, o republicou no número “Summer 2005”, a que se seguiriam dois anos de fecho da revista, sinal de que alguma maldição persegue “The Prodigal Son”******.

Faulkner, sabemos, nunca escreveu os seus romances. Criou personagens e deixou que cada uma os escrevesse, caóticos e labirínticos, contando do seu ponto de vista a mesma história ou diferentes partes da história. “Go Down Moses” comprova a verdade desta tese. Porquê, então, roubar-lhe a coda que é “The Prodigal Son”, condenando esse conto sublime a ostracismo digno de uma história apócrifa?

“Go Down Moses” deveria ser um permanente diálogo entre vozes brancas e negras. Tem de dizer-se que “The Prodigal Son”, fechado sobre a lareira dos Beauchamp, exclui, a não ser por rememoração, a voz branca e, por isso, Faulkner o excluiu. Pode ser quanto baste para uma explicação académica. Não chega para edificar um mito.

A estatura humana de Molly faz dela, mãe negra, um lugar íntimo contraposto ao mundo masculino de raiva e ritos físicos brutais. Ela é a casa secreta para onde Roth, o branco, e Henry, o negro, se permitem fugas emocionais. A personagem de Molly será, especulo, um tributo a Maud, a mãe de Faulkner. A proximidade do autor com esta personagem impeliu-o a ser ele mesmo uma personagem dos seus romances. Henry Beauchamp, o negro que regressa, despido de azedume e ressentimento, é em “The Prodigal Son”, o próprio Faulkner. Neste improvável encontro de Antígona e Ulisses, Faulkner expõe carne, sangue e ossos e reivindica total projecção numa identidade racial que não é a sua. Do gesto, sobram hoje 15 páginas num arquivo universitário. Em 1941, no Mississipi, esse era um tabu trágico.

“The Prodigal Son” é a casa secreta de Faulkner, a ficção que prescinde do seu autor, o conto de piedade que um moderno Sófocles escreveria depois de ler “Go Down Moses”. Talvez, quem sabe, Faulkner não seja sequer o seu autor e talvez, por isso, o conto se tenha tresmalhado. Molly, no final de “The Prodigal Son”, um escasso fogo ainda na lareira, desiste de tanta identidade para encontrar a paz: All I got to give up is this blood that rightfully aint even mine.” Faulkner também fez o mesmo. Erradicou “The Prodigal Son” das suas veias.

Notas

*As citações de “The Prodigal Son” vão realçadas a negrito para facilitar rápida identificação e leitura.
** É o caso de “The Sound and The Fury”, “Absalom, Absalom” ou “Unvanquished” por exemplo.
***Molly compara o destino de Samuel ao de Benjamim, vendido ao faraó Roth, como Josué foi vendido pelos irmãos aos egipcíos. Ela atribui a Roth a culpa do desvio e perdição de Samuel.
****A genealogia dos McCaslin e dos Beauchamp é intrincada. Há comentadores que sustentam ser Samuel o descendente de uma pretensa filha mais velha de Lucas e Molly. Nesta genealogia, de autoridade indisputada, não há traços dessa filha e, pelo que sabemos da história de Nat, a filha mais nova, só Henry podia ser o pai de Samuel.
***** Em “The Prodigal Son”, Henry retoma as metáforas bíblicas de Molly no ponto onde ela as deixou em “Go Down Moses”.
****** Sou um felizardo. O ano passado, um meu kamba transumante, trouxe-me esse fatídico número da Prism. Lenda urbana ou não, diz-se em Princeton que uma parte dos exemplares desse número, por inexplicável erro de impressão, não incluíam o conto. Só por mera curiosidade, acrescente-se que as colaborações de Graham Green na Story estão guardadas na mesma Box de Faulkner, no Folder 42.

3 thoughts on “Um inédito de William Faulkner”

  1. Faulkner, o Grande=traduzido por Sena=pouco celebrado mas felizmente referido neste blog (o Sena). Sena, Miguéis, Agustina. Os Nobeis que nunca foram mas é pena.

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