Chegara no dia anterior. Na segunda noite, Girolamo foi à Igreja. Era conhecido o seu gosto pelo debate e recomendaram-lhe o sermão de um frade agostinho. Sentou-se. O frade aproximou-se do púlpito. A voz veio sobre ele como um sinal de fogo. Sacudido pela pedra do pecado e pelo punhal da vingança, Girolamo tombou morto aos próprios pés.
O frade em chamas incendiou o pecado, o adultério, a prostituição, a doutrina de Balaão, a imoderação gulosa das carnes ímpias sacrificadas aos ídolos. O cadáver de Girolamo girou duas vezes sobre si mesmo e pôs-se de pé.
“Converte-te, pois! Do contrário, virei logo contra ti, para combatê-los com a espada da minha boca”* gritava o frade alado, voando negro e rente à cúpula da catedral. Da sua terrível boca de anjo saíam visões proféticas: relâmpagos e trovões reduziam a cinzas a imoralidade do clero, uma tempestade de granizo tombou sobre os blasfemos, os ventos da ira gelaram os pagãos e o vício. Girolamo viu entao a Besta que subia do mar e viu que era esse o seu novo corpo: dez chifres e sete cabeças, a Besta com mandíbulas de Leão.
Viera a Faenza para uma curta viagem. Saíra de Ferrara, homem jovem de 22 anos, com doçuras de filósofo, mãos com dons de médico, no riso e na personalidade a bênção de tantos talentos. Era Girolamo, filho de família. De quem a vida e os prazeres dela gostavam.
A voz do frade — se alguém tem ouvidos, ouça – calou-se. Girolamo, imolado à perigosa perseverança e fé dos santos, levantou-se. Escorria-lhe no corpo o suor acre da salvação. Entrou na noite de breu, pronto para lançar o grande lagar do furor de Deus sobre a cidade, o mundo, os livros, as mulheres e os homens.
Em Faenza, depois da prédica de um frade agostinho, morrera Girolamo, nascia Savonarola.
Um inexplicável minuto de vento polar cruzou o luxo da voluptuosa e distante Florença.
* — Do “Apocalipse” donde, aliás, são pilhadas as imagens que povoam o texto.