A minha Baby

Há esses pais que se gabam de beijar as lágrimas dos seus filhos. Do que me lembro do meu pai, que não era comigo de muitos beijos, é da felicidade que retirava dos sorrisos que me punha de orelha a orelha. Estava eu a dar a volta dos 12 para os 13, corria o ano de 1966, e ele julgava que me arrancaria um desses sorrisos, um de Luanda a Moçâmedes, ao oferecer-me uma máquina de escrever. Era uma Hermes Baby, teclado azert, verdinha, de se levar debaixo do braço como hoje se leva um tablet.

Olhei para o monstrinho verde, como quem olha para um extraterrestre, numa reacção pessoana, de primeiro estranha-se e mais tarde se verá se se entranha! Sabia lá eu quem era Fernando Pessoa. E ainda menos adivinhava as aventuras que viveria com essa doce Hermes Baby!

Logo nesse ano, depois de me dedicar a aprender a decorar o teclado, com o mesmo afinco com que chutava a pesada bola de catchú no quintal, e depois de ser capaz de bater um texto à máquina de olhos fechados, a minha Hermes, ó baby, ouviu comigo religiosamente os relatos dos jogos desse Portugal que Eusébio levava ao colo pelos belos relvados ingleses. A minha Hermes gritou, chorou baba e ranho e explodiu em glória quando Eusébio vergou a Coreia do Norte à humilhação da remontada de uns zero três a uns cinco a três, essa conta que Deus fez, por Eusébio, por duas vezes, lhe ter ensinado a tabuada da coisa.

A minha Hermes colou-se-me aos braços, entrou-me olhos dentro, e o meu jovem cérebro habituou-se a deambular pelas 47 teclas e pela barra de espaços, deliciando-se a inventar mentiras e a confessar as poucas verdades que ia descobrindo. Eu já quase não batia nas teclas, os meus dedos acariciavam-nas apenas e, depois de fechar as portadas da janela, no semiescuro, despia um bocadinho a Baby, enrolando-lhe dengosamente a fita de tinta vermelha e negra, enquanto o rolo apertava com firmeza, para não dizer que se roçava, como então dizíamos que jean jacques se roçou, pelas duas folhas de papel separadas por um químico (o que eu sempre gostei de duplicados!).

Tornámo-nos inseparáveis. Aos 15 anos, arranquei-lhe poemas, manifestos, um jornal de rua, os novos estatutos de Os Falcões, um clube de candengues caluandas mal saídos dos cueiros, que era o que nós éramos, ali no cruzamento da Fernando Pessoa com a Alberto Correia. Em 1970, aos meus 17, já essa Baby de 4 anos, escrevia os textos do catolicíssimo e progressivíssimo programa Aguaviva, que a luandense Rádio Ecclésia me deixou fazer. E mais, já o teclado da curvilínea Hermes se metia em conversas de adultos, escrevendo uma rubrica semanal, “O Rei Morreu, Viva o Rei”, no grande programa Equipa, de que o patrão, Carlos Brandão Lucas, fazia a coisa mais moderna e fora da caixa da rádio luandense.

A minha Hermes Baby levou pela mão este ceguinho que eu sou revelando-lhe as assombrosas fendas cósmicas da Guerra Fria, pediu-me que olhasse lá de longe a guerra do Vietname, e de perto a nossa ultramarina guerra colonial. Mas devo-lhe sobretudo os êxtases com que olhou para o que em Brigitte Bardot eram “rondeurs” e um ou outro lábil declive.

A Baby correu comigo o mundo, Paris, Grenoble, Lobito, Los Angeles, San Francisco, Pinhel, San Sebastian. Entrevistou a Glenn Close e a Angelica Huston, o Storaro e o Coppola. Mesmo o George Lucas. Descansa, agora, aqui em casa, caixa aberta para que o teclado brilhe. Que o meu pai saiba – diz-lhe, diz-lhe, Deus! – dos mil sorrisos, daqueles de 700 km de Luanda a Moçâmedes, que esse regalo dos 13 anos, arrancou ao meu coração.

Publicado no Jornal de Negócios

2 thoughts on “A minha Baby”

  1. Nunca fui tão “autodidata”! Os meus pais deram-me “de presente” um curso de datilografia (o “must” da altura 🙂 e só depois de ter o “diploma” ( que conservo até hoje…tanto papel que tento deitar fora, mas depois “eles olham para mim, eu olho para eles” e… ficam adormecidos mais uns tempinho) me foi oferecida uma azert. 🙂

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