Rejeitar a água e beber vinho

Aos que, atirando tinta às montras ou colando-se ao alcatrão, querem estarrecer a gravata pipi do Dr. Luís Montenegro ou o beto colarinho do menino Dr. Pedro Nuno Santos, um aviso, a iconoclastia é velha como caraças.

Para não voltar atrás mais de 150 anos – que senão é muito longe e dá-me tonturas – peço que venham assistir, em 1878, em Paris, à criação dos Hidropatas. Boémios, pouco apreciadores de água, que rejeitam em favor do vinho, eis o que é ser hidropata.

É um movimento que quer provocar as artes estabelecidas, desafiando todos os que não sabem desenhar, pintar, escrever, cantar a fazer o que eles chamam “obras incoerentes”. É um delírio de produção loucamente híbrida, em sessões que chegam a reunir 350 pessoas – ou seja, mais do que os actuais leitores de poesia em Portugal.

Não me contenho e bato palmas ao entusiasmo que extravasava do Café de la Rive Gauche para todo o Quartier Latin então ainda a salvo da praga inquisitorial de tudo o que é “sistémico”, esse bocejo teórico dos nossos dias. Um funcionário público podia ser tenor ou barítono, o maquinista pintor, um poeta escultor, um pintor poeta. O essencial é que – no exercício pleno e consciente da incoerência – cada um fosse aquilo que não era. Custa-me até escrever isto, porque em certo sentido é o resumo cruel da minha vida, mas adiante.

Tal como acontece no Bairro Alto, os clamores eram tão estrídulos que os moradores protestaram. Os Hidropatas, que tanto podiam ser pintores ou tipógrafos, poetas ou bibliotecários, escultores ou burocratas, responderam com petardos e fogo de artifício criando autênticos tumultos. Lenine estaria, se alguma coisa soubesse de Hidropatia, de acordo comigo: o tumultuísmo foi a fase infantil do hidropatismo.

O incoerente, aviso já, tinha um código de comportamento tão exemplar como o do camarada Paulo Raimundo, mas com uma variação. O Incoerente, e não sei porquê agora deu-me para a maiúscula, vai na rua e cumprimenta toda a gente, aperta a mão ao senhorio, saúda o polícia, faz uma vénia à dama que passa. Ó meu Deus, mas se vê um co-Incoerente – e cito o Hidropata fundador Emile Goudeau – o Incoerente “desagrega-se e desarticula-se”, começa a fazer caretas, a boca em esgares cabalísticos, as pernas a agitarem-se numa cadência extravagante.

Jules Lévy, que como bom Incoerente, era nervoso, robusto, jovem e ágil, sem reumatismo nem cefaleias, resgatou a crise dos Hidropatas com uma muito iconoclasta exposição artística. A exposição, no dia 1 de Outubro de 1882, foi em sua própria casa – e eu convido os iconoclastas actuais a atreverem-se a semelhante coisinha estarrecendo o papá e a mamã.

Casa cheia, à procura desse absurdo que Ionesco definiu como sendo aquilo que “não se aguenta nem de pé nem sentado e ainda menos deitado”, uma multidão sedenta de excitação veio rir, beber, declamar, tudo isto mandando abaixo os clichés, enquanto se entretinha a ver quadros, caricaturas, poemas de Incoerentes que não sabiam pintar, desenhar ou escrever. Foi um êxito admastórico, se me permitem o neologismo.

E o que defendo é que as Artes Incoerentes, que Jules Lévy, nesse distante 1.º de Outubro, começou no seu quarto, porventura sobre a colcha da sua cama – Mona Lisa a fumar um cachimbo, a boca da Lua a engolir um homem –, são pai e mãe do Dada e Surrealismo e do urinol de Marcel Duchamp, que hoje os museus acarinham, numa glorificação póstuma do absurdo.

Nada que o Hidropata Goudeau não tivesse previsto. Dizia ele: “Um Incoerente entra na reforma casando-se ou apanhando reumatismo.

Publicado no Jornal de Negócios

O tango e o animal nocturno

Os mesmos manos muitos anos depois

Meu Deus, como pode ser falsa a idade. Vejam: o meu cartão de cidadão brinda-me com uns mimosos 71 anos de vida. Porém – e meço bem o peso da adversativa –, porém, nada mais falso do que essa crua e pretensa idade.

Pergunto: pode estar vivo quem não come? Ora, eu só me lembro de começar a comer aos 15 anos. Saía como um animal nocturno de casa de meus pais, com os amigos Simão e Abílio, devorava búzios, camarões, caranguejos de Moçâmedes, quitetas. Não era a singela dieta de um canibal, esse hoje menosprezado gastrónomo de épocas remotas, que conservava gostos simples, mantendo-se num regime natural pré-porcino. Ao contrário de qualquer senhor canibal, porcinas iscas, rins e febras faziam parte da pantagruélica fome que me nasceu aos 15 anos

Sim, eu já conhecia o restaurante, mas não comia. Na minha rua da Vila Alice, em Luanda, mesmo em frente ao meu Mário barbeiro, era a Churrasqueira, morava por cima o Simeão. Tinha quartos, pensionistas, comida para fora e dois matraquilhos. Passei ali inteiras tardes de férias durante dez anos e nunca gastei um angolar que fosse a não ser a jogar matrecos. O dono, o Senhor João, de camisola interior de alças, uma tropical gota de suor a prender-se aos pêlos do peito, vinha com um facalhão que virava para o lado boto e nos passava pela garganta. Gritávamos como uns degolados.

A Churrasqueira da Vila Alice nunca teve um anúncio como o que, nos anos 50, publicou, em França, o Auberge de l’Oef Dur, a que, não sendo eu um fã de ovo cozido, chamarei a Estalagem do Ovo Duro. Era a hora e meia de Paris, em Saint-Cyr-Sur-Morin, e lá se falavam quatro línguas, o espanhol, inglês, alemão e francês. O anúncio, além dos licores de marca, prometia álcoois de países longínquos e estupefacientes. Tinha também, coisa que a minha Churrasqueira nunca ofereceu, e copio os termos do anúncio, “salões para enterro da vida de rapaz”, a par de selectos “five o’clock teas”. Estando em pleno campo, a casa lamentava não dispor de telefone, pedindo aos clientes que escrevessem ou telegrafassem na véspera. Pormenor de alto gabarito era a nota final: “Será oferecido um croissant graciosamente a todo o consumidor até ao dia em que a casa declare falência.”

E volto aos meus 15 anos, mais de ovos estrelados do que cozidos. Batia finos geladíssimos, como nunca mais os verei a estalar, no Polana, para os lados da Rua Direita. E perto do Porto de Luanda comi os mais tenros pregos no pão do mundo, num tasco, o Olho do Cu, que devia desfazer a carne com o leite da cana do mamoeiro. Permiti-me por vez o luxo das sanduíches de presunto em pão aquecido, no Baleizão, quando aos 17 anos, era eu ajudante de tesoureiro, ia buscar ao banco, com o motorista do Centro de Medicina Física e Reabilitação, o dinheiro dos salários. Tínhamos uma malinha com dois mil contos numa mão, a outra a balouçar entre a sanduíche e o respeitável fino do meio-dia.

Mais luxo ainda, já as cores da revolução a aparecer, eram as noites do Pólo Norte, o snack-bar que me parecia a coisa mais selecta do cosmos. Era o padre Janeiro e o Abilio que pagavam – da caixa das esmolas? – e juntava negros e brancos, o Mindo, o Cesarito, Victor e eu, católicos de comunidade de base a sonhar, em tostas e combinados, cucas e nocáis, com um mundo melhor e mais bailarino. E aí está, bastava que um de nós dissesse a palavra “dança”, para que o nosso padre logo contasse a história de Monsenhor Duchesne, bispo conservador francês. O que achava ele do tango, quiseram os jornalistas saber, e respondeu célere: “Só não sei porque é que se dança em pé!” Ríamos e saía mais um fino.

Publicado no Jornal de Negócios

Oh! que querido

Começo esta crónica em regime de pura gatunagem. A frase é de Pauline Kael e o que Kael disse foi isto: “Esta é a mais cómica, neurótica e desorientada senhora do ecrã”. Estava a falar de Teri Garr, mulher que eu amei, de baba e ranho, no “One From the Heart”, do saudoso Coppola.

Mel Brooks, o realizador de “Young Frankenstein”, uma daquelas comédias que, de tanto nos fazer rir, temos a tentação de desvalorizar, quando a convidou para o filme, estava cheio de dúvidas que partilhou com Gene Wilder o actor principal: “Ela é deliciosamente linda, mas será que sabe representar?” Gene foi cortante: “Who gives a shit?”, que em bom português quer mais ou menos dizer “Estou-me bem a cagar”.

E agora quero dizer uma coisa elegante. É verdade que Teri Garr tem uma incrível beleza, mas é uma beleza que, apesar da pele brilhante, apesar do sorriso radioso, apesar do porém do seu colo suave (e já lá irei), é, dizia eu, uma beleza que ela embrulha num celofane auto-depreciativo, como se nos estivesse a dizer “caso não percebam que o melhor de mim tem um sabor de especiarias e entontece como um dry-martini, então tomem e embrulhem”. Só a prodigiosa Shirley MacLaine foi capaz de tanto desprendimento: mesmo Nossa Senhora de Fátima tem a sua beleza em mais auto-estima do que Teri a que Deus lhe deu.

E voltemos ao colo de Teri Garr. Antes de fazer a audição para o papel de Inga, a assistente de laboratório de “Young Frankenstein”, Teri olhou-se ao espelho e viu que o seu peitinho era de relativa irrelevância, atendendo ao que deveria ser o pulposo seio de que um verdadeiro cientista gosta. “Caramba, não vou perder o papel por causa das mamas”, pensou. Como é que eu sei que ela pensou isto? Sei. E ainda estou a ver Teri Garr a caminhar para os armazéns da Woolworth, onde se não estou enganado comprei um colchão (ou pelo menos uma almofada) para o minúsculo quarto-kitchenette-wc em que vivi por três meses em Los Angeles. Saí com um colchão, Teri com lenços e peúgas. Aconchegou tudo sob o sutiã, em íntimo convívio com o acetinado e túmido da sua natureza (como é que eu sei? memória minha do fugaz nu com Raul Julia no “Do Fundo do Coração”), fazendo questão em explicar-nos: “As pessoas espatifam milhares de dólares em cirurgias às mamas. Por cinco dólares no Woolsworth fiz a minha: foi dinheiro muito bem gasto”.

Teri começou bailarina nos filmes de Elvis Presley. Foi um cometa a iluminar cenas de filmes como “Os Encontros Imediatos”, de Spielberg, o “After Hours”, de Scorsese, o “The Conversation”, de Coppola, o “Tootsie”, de Sidney Pollack. Sabia dançar – adorei-lhe libidinosamente as pernas no “One From the Heart” – mas sabia sobretudo enternecer.

Nesse “Do Fundo do Coração” deixa o namorado, o Frederic Forrest, preferindo deslizar para uma aventura sexy e selvagem com Raul Julia. Um desolado Frederic vem ao aeroporto para a convencer a ficar: implora, promete e ela já vai a entrar na manga com o amante, quando, último recurso, Frederic começa a cantar o “You’re my sunshine, my only sunshine”.

Frederic canta maravilhosamente mal, um horror de ternura, um sentimento de perda do quinto dos infernos. Teri pára, no grande plano dela vemos então um carinho deliciado pela amorosa humilhação daquele homem. Como quem diz, e não sei se diz mesmo: “Oh, que querido”. E depois continua, em direcção à aventura, ao lado amante que promete fazer-lhe as coisas, em cima ou em baixo, que ela anda com vontade de experimentar.

Teri Garr foi agora mesmo lá para cima, experimentar as coisas que já não pode ter cá em baixo.

Publicado no Jornal de Negócios

gatos e tigres brilham na noite escura

Este textinho começa com gatos e acaba com tigres. Parece que tem garras, mas vão ver que é meiguinha. Obrigado, queridas amigas e queridos amigos, por me lerem.


Há gatos, uma fila de gatos a invadir estes meus livros de Novembro. Deixem que os gatos, os gatos de Eugénio Lisboa, se aninhem no vosso colo. Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso foi o último livro que Eugénio Lisboa, antes de se ir passear pelas altas montanhas celestes, me deu, mão na mão. Em 31 sonetos, irmanado com Da Vinci ou T. S. Eliot, Eugénio canta os gatos, canta-lhes a sabedoria, a astúcia. Este Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso é lindo: cheio de fotos de uma comunidade de amantes de gatos. Otília Pires Martins trouxe-me as imagens; Onésimo Teotónio Almeida escreveu um substancial posfácio e o livro ficou felino, com faiscantes olhos de gato a brilhar na noite escura. É, juro, a mais bela prenda de Natal, um pudim de Abade de Priscos para adoçar consoadas.

E agora troco os deliciosos gatos do Eugénio pelo grande tigre que é a História. Dedico-lhe três livros. O primeiro é a História de Angola, da Pré-História ao Início do séc. XXI da autoria do historiador Alberto Oliveira Pinto. É uma história de três «émes»: monumental, minuciosa, múltipla. Uma edição ambiciosa, com mais de 800 páginas, que teve um mecenas exclusivo, o dstgroup, uma empresa privada com uma política cultural de responsabilidade social única: o dstsgroup vai levar esta História de Angola às bibliotecas públicas portuguesas, mas mais, aos leitores angolanos, numa acção inovadora, a anunciar. A Guerra e Paz faz a vénia ao Eng. José Teixeira, a quem já devíamos o apoio ao maravilhoso Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor, a mais completa antologia de poesia angolana, e a quem, agora, em dois continentes, os leitores têm de agradecer esta História de Angola.

E há mais dois livros sobre esse fascinante tigre fulvo que é a História: dois Atlas, a saber, o Atlas da China, a Potência Alternativa, de Thierry Sanjuan, Carine Henriot, com mapas de Madeleine Benoit-Guyod, e o Atlas Histórico da Rússia, de Ivan III a Vladimir Putin, de François-Xavier Nérard, Marie-Pierre Rey, com cartografia de Cyrille Suss. São dois Atlas acutilantes, sínteses notáveis, com mais de 100 mapas, sobre essas nações gigantes, esses dois tremendos espectros (cheios de História e de irreprimível potência) que assombram a Europa. Mas, por favor, não tremam, leiam!

E há um sueco que não tem medo de enfiar um dedo e mexer o quente caldo da História (ou que puxou à História o rabo de fora do gato escondido). Estou a falar de Johan Norberg, um historiador que acredita no futuro, nas empresas, nos direitos humanos e no comércio livre.  Escreveu um livro com um título, O Manifesto Capitalista, que fez sorrir Marx no túmulo (eu vi, que costumo ir lá visitá-lo), a que acrescentou um subtítulo que nunca mais acaba e é um grande começo de conversa: O mercado livre global irá salvar o mundo. Como? Porquê? É o 19.º volume da colecção Os Livros Não se Rendem, a menina dos meus olhos, e menina dos olhos da Fundação Manuel António da Mota e da Mota, Gestão e Participações que nos dão o seu alto patrocínio. E como são sempre pessoas que decidem, agradeço ao Eng. António Mota e ao Dr. Luís Parreirão, os firmes três anos de apoio que deram para que os livros nunca se rendam.

E vamos lá ronronar de outro modo. «Chamo virgem à mulher que faz amor com um só homem!» É esta a porta – estive quase para dizer, a cama – de entrada de Emmanuelle, A Antivirgem, o segundo romance de Emmanuelle Arsan. É um romance, pura ficção (garanto que não é impura) à glória de um trio feliz, ou como diz Emmanuelle a outra personagem «é o amor de amar que faz de si a noiva do mundo». Lê-se e mesmo eu, com os meus 71 anos, acabo de maças do rosto rosadas.

E há uma jóia portuguesa que merecia e passa agora a ter um romance. A Jóia Que o Rei Não Quis, da autoria de Mónica Bello, é uma estreia em joalharia e prata. A cortante protagonista deste romance é uma faca de mato real, uma cobiçada obra de arte encomendada por D. Fernando II a um ourives de Lisboa. Comprada por ingleses, a peça acabou no fundo do mar. Resgatada, numa incrível aventura, a faca desagua agora neste A Jóia, romance Indiana Jones style assinado por Mónica Bello. Claro, a Fidelidade, proprietária há 148 anos dessa peça assombrosa, tinha de ser e é nossa parceira, com o seu alto patrocínio.

São estes os sete livros de Novembro da Guerra e Paz. Quantas vidas há neles: tantas ou mais do que as dos gatos do tão belo adeus que Eugénio Lisboa nos deixa?

E agora entram os gatos da Rita Fonseca – e é uma pena que Eugénio Lisboa nunca tenha conhecido a Nico, a negríssima e sumamente independente gata da minha filha. Os gatos da Euforia, a nossa nova chancela são dois romances de garras afiadas. Celebrity Crush tem um título inglês, mas é de uma autora lusíada, Clara Novo. Quase tudo se passa em Londres e a viagem vale a pena: é romântica, mas também é sexy.  E, surpresa, há uma via hilariante para a autodescoberta.

Um Amigo no Escuro é o título português de um romance americano de Samantha M. Bailey. Se se lembram com nostalgia dos amigos de liceu ou de universidade, que já não vêem há décadas, pensem bem antes de os voltarem a ver: desaconselha-vos que se metam num romance virtual escaldante quem já leu este Um Amigo no Escuro.

Manuel S. Fonseca, editor

Perfume de uma noite tropical

Eusébio, Coluna, o pequenino Simões, o Torres gigante desciam da escada do avião para a pista do Aeroporto de Luanda e uma alucinada onda de perfume descia com eles. Ainda não disse: quem vinha à frente era o senhor Otto Glória, brasileiro, com o seu crespo bigode mestiço, a impor respeito ao miúdo que eu era, talvez 12, 13 anos. O Benfica, o SLB desses anos, cheirava bem. O Benfica perfumava uma noite tropical, resgatava até uma noite colonial. Eu estava lá.

Já cá não estarei em 2050, mas o telepático futuro, em sussurro ou estrépito, vem contar-me à noite as coisas que hão de vir. De 2050, o maléfico futuro deu-me conta de elixires entorpecentes e de um Portugal apocalíptico.

Um spleen baudelairiano afligirá os velhos. Em vez de jogarem à sueca nos jardins e baterem uma camuflada manilha, atacam-se uns aos outros, numa nevrose inexplicável que uma cerrada e negra melancolia há de cobrir.

Os jovens de 2050, conta-me o xamânico futuro, estarão abúlicos, anémicos e anómicos. O sexo é fortuito, destituído de sedução, agora interdita, um sexo imparticipativo, obrigado à repetição de um mecânico vaivém, nem bem que entras, nem bem que sais, sem efusões ou magia.

O pesadelo é a regra de 2050. Os escritores soçobraram, perdido no tempo o segredo da esplêndida prosa, entregues à lamúria de quem ignora o mistério ou o engenho da alegria, o elixir da felicidade.

Toda a música é sonâmbula, e os coros estão proibidos – nos velhos e decrépitos auditórios, os raros espectadores entreolham-se com horror. Não há cânticos na rua, ninguém sabe já o que é uma mole humana unida à volta de um rubro estandarte, narinas sôfregas, mãos trémulas de sentimento, numa só voz a soletrar a vitória e a glória.

De onde vem essa decadência? Foi essa a patética pergunta que fiz ao profeta de 2050. Vi-o ganhar a dimensão do colossal Gulliver. O espírito da nação, gritou-me ele, afundou-se como o imemorial rio que seca. E acrescentou: tudo começou, abrupta, inexoravelmente, dez anos antes, em 2040.

Descubram, então, a labiríntica verdade que nem a mais astuta sociologia antecipou. Num tribunal, sentenciou-se um processo que o Ministério Público começara no remoto, mortalíssimo ano de 2024. Um caso de corrupção desportiva, que se arrastou por penosos e novelescos 14 anos. O réu foi, por fim, em 2040, apostrofado e condenado: era, diz-me o xamã de 2050, um clube de futebol. Condenado a baixar ao Hades que era a 4.ª divisão, o clube foi extinto. Dessa certeza jurídica nasceu, como o perverso Baco da coxa de Zeus, a caducidade e morte da fé de toda uma nação.

Ao primeiro vendaval de incredulidade, sobreveio o tufão da amargura. Um torpe ateísmo sentimental derramou-se como véu negro sobre os corações: todos os corações, o do rico e do pobre, mulheres, homens, as jovens raparigas de perna lábil e lábios rouge, os cândidos rapazes movidos a cerveja e a inescrutável e labiríntica testosterona. Uma inteira nação, os políticos, a Assembleia da República, as forças armadas, o inconsolável Presidente, mesmo o impávido jurista, uma inteira nação, repetiu-me ele, transformara-se numa gigantesca barata kafkiana, e de Dante imitou os nove ciclos do inferno.

O clube, confidenciou o xamã, era o mesmo desses rapazes que eu vira descer as escadas de um avião em Luanda, esses rapazes, Eusébio, José Augusto ou Humberto, que espalhavam fragrâncias na noite de África e nas tardes da Europa.

Sonho ou pesadelo, acordei. Não voltarei a escutar o inverosímil xamã: o futuro ou é glorioso ou nunca será. SLB forever!

Publicado no Jornal de Negócios

Pedro e Luís já dançam

Comecemos pelas pernas. Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro têm pernas altas. Umas pernas de Cyd Charisse? Bom, talvez umas pernas de Fred Astaire ou Gene Kelly. E pergunto, serão, Pedro e Luís, bons dançarinos? Gostava de os convidar para virem ver juntos um filme musical, um dos clássicos musicais do tempo dessa Hollywood que tinha mais estrelas do que estrelas havia no céu.

Há uma tonelada de cenas que se poderiam roubar aos musicais, cenas com o diáfano Fred Astaire, que talvez se pareça mais a Luís Montenegro, ou com o arrebatado Gene Kelly, de que Pedro Nuno Santos herdou um feitiozinho impulsivo. Tenho de escolher o filme a que os levo: de tão ocupados com o Orçamento o tempo escasseia-lhes e sei bem que só lhes posso mostrar uma cena. É um crime lesa-musical, mas se é para prevaricar, escolho, do “Singin’in the Rain”, a cena em que, depois de beijar o Orçamento – ah, desculpem, a namorada –, Gene Kelly dança sozinho à chuva.

É um atentado ao bom gosto deixar de fora Cyd Charisse? Sim, é. É como assaltar a loja da Tiffany’s e vir de lá sem os diamantes. Mas há justiça poética, uma ligeira e insidiosa metáfora, nessa cena em que Pedro (quero dizer, Gene Kelly), sapateia sozinho à chuva. Luís e Pedro, uns dirão que mais Pedro do que Luís, gostam, afinal, de dançar sozinhos.

Quando assistimos a um filme, praticamos uma coisa a que se chama a suspensão da descrença. No escuro, deixamos de lado o nosso espírito crítico e passamos a acreditar que é verdade o que estamos a ver. Num musical, fazemos uma dupla suspensão da descrença. Não só acreditamos que é verdade, como achamos que a forma cantada e dançada de representar é o que fazemos na vida real – e note-se que nada disto é estranho a Luís e Pedro, cujas acções e bailados governamentais, cujas serenatas oposicionistas e orçamentais não seriam possíveis sem uma bem blindada suspensão de descrença! Alguém me sugere que mais Pedro do que Luís, mas quem sou eu para os julgar.

E agora esqueço-me de Pedro e Luis e continuo a dançar, mas só com Gene Kelly. Ora, o que eu queria mesmo dizer é que a cena de Gene Kelly a dançar à chuva é afinal uma das mais eufóricas afirmações da gentileza humana que o cinema foi capaz de nos dar. O nosso melhor lado, a parte bon­dosa do nosso ape­tite sexual, a galan­te­ria, uma certa gra­ci­o­si­dade iró­nica da espécie que somos, estão espelhadas, nos movimentos do corpo apaixonado de Kelly a dançar à chuva, na forma como ele se casa com o cenário e com os movimentos de grua da câmara. 

Seria aliás uma cobardia, não dizer o essencial: o corpo de bailarino, o corpo de Gene Kelly não se limita a executar, o corpo exprime. Há linguagem no corpo de Kelly, as pernas dele pensam, os pés conceptualizam. (As pernas e os pés de Pedro e Luís também?) Muita treta se disse da falta de corpo na arte do Ocidente e do reprimido corpo judaico-cristão. Ora o corpo está nesta cena, o corpo ágil de um homem, e é um corpo patente, potente e contente. Vemo-lo exuberante, sem sombra de repressão ou depressão.

Eu acredito que há extraterrestres e que um dia hão-de invadir isto tudo. Nesse dia – e espero que sejam Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos a recebê-los num “pas de deux” –, devemos pô-los a ver Gene Kelly a dançar à chuva. Ao vê-lo, os extraterrestres olharão para nós com misericórdia e simpatia, por descobrirem que, quando cantamos, quando dançamos, somos gentis, amáveis, escapistas, optimistas e infinitamente generosos. Seja Gene Kelly o nosso embaixador. Cyd Charisse ao seu lado, está claro.

Publicado no Weekend, o suplemento de 6.ª feira do Jornal de Negócios

O incheirável pum!

Na crónica da semana passada, este escalavrado autor e as minhas leitoras e leitores, comungámos o fascínio pela torneada perfeição que eram as nádegas de Brigitte Bardot em “O Desprezo”, essa obra-prima de Godard. Eram lindas – vermelhas, azuis e amarelas conforme os filtros com que Godard as filmou, em três minutos gourmet.

Passar das nádegas da então juvenilíssima Bardot às cansadas nádegas de um velho actor de Ingmar Bergman é uma associação livre impertinente ou, para usar linguagem cinematográfica, um “raccord” que se arrisca a azucrinar mesmo o mais terno dos espectadores

E, não obstante, essas nádegas, de que vos quero falar, também existem, não só porque os velhos têm nádegas, mas também porque esse assombroso filme chamado “Fanny e Alexandre”, inarredável mergulho de Ingmar Bergman na sua infância, tem nas nádegas de um velho actor um momento de soprada transcendência.

Perguntar-me-ão, mas que raio de transcendência haverá numas nádegas cansadas e descaídas, esse incheirável monumento de decadência e declínio que o bom gosto omite e a boa moral camufla?

Ora, e se me perdoam a digressão teórica, sempre defenderei que as grandes narrativas, os mais arrebatados impulsos estéticos são muitas vezes os que não parecem ter significado nenhum, tão ausentes julgamos estarem de pregnância artística.

E quero então mostrar-vos esse velho actor bergmaniano a começar a baixar as calças. Tudo se passa em Uppasala, na Suécia, nos anos dez do século XX, na infância estremecida, gloriosa, de Ingrid Bergman, cheia de medos polvilhados com o branco açúcar da alegria.

Estamos na mais calorosa ceia de Natal. Uma gigantesca família – são 20 ou 30, já não me lembro – partilha a mais voluptuosa refeição, as carnes, os molhos, os vinhos, os doces. Dança-se nos salões da riquíssima mansão, um dos lascivos patrões arrasta uma criada afogueada para um canto, beija-a, e ela a ele, a mão masculina já deambulatória pela fresca nádega – e ainda não é essa a nádega protagonista desta minha crónica.

Vejam, o velho tio arrastou os miúdos da casa para a escadaria interior. Em segredo, e que miúdo não se desalma por um bom segredo! Um deles é o menino Bergman, mas há mais três, e cito de cor, meninas e meninos. O velho tio pergunta, com ar melífluo e sussurrando, se querem ver trovoada e fogo de artifício. Os rostos das duas meninas e dois meninos, lábios húmidos, abrem-se em flor: querem. O tio tira os sapatos, despe as calças, por baixo as ceroulas suecas que vão até aos tornozelos. Sobe e desce as escadas para ganhar gás e começa o foguetório. O primeiro traque é uma explosão. Já a segunda ventosidade é quase uma sonora abertura musical. Na cara dos miúdos há uma elevação sublime, também o prazer do pequenino pecado que é a participação numa cerimónia secreta. Já a libidinosa cara do tio se contorce a preparar o “gran finale”. Pede a um miúdo (é Bergman, só pode) que segure no castiçal de três velas, sobe e desce cinco degraus e, de traseiro exposto, dispara o último e farto flato que apaga numa só rajada as três velas.

Para minha desgraça pessoal aqui estou eu, a escrever-vos para defender o eufórico valor artístico do traque.  Contamos histórias porque queremos ouvir o traque, o sonoro flato, a ventosidade que faz bruxulear a luz de uma vela. As histórias são os traques que ressuscitam e fazem rir o menino que os trabalhos e os dias adormeceram em nós.

Peço-vos uma coisa. Subam e desçam as escadas a correr, baixem as calças, levantem as saias e, como o tio de Bergman, façam o têm a fazer.

Publicado no Weekend, o suplemento de 6.ª feira do Jornal de Negócios

Está deitada e nua

Levantei-me agora da cama – sesta das três da tarde de fim de semana – e, se me deitara a não pensar em coisa nenhuma, levantei-me a pensar na nudez. Já de pé, saiu-me esta conclusão tão trivial como todas as que nascem de uma sesta de fim de semana: há uma dissimulada diferença entre a nudez americana e a nudez europeia.

Lembro-me, em Los Angeles, eram 10 da noite, ou talvez fossem já umas tardias 11, estávamos todos vestidos, numa bebida pós-prandial, a música techno a acariciar a azulíssima piscina do Chateau Marmont, e uma mulher deixou cair o alvo roupão aos pés. Estava nua, mergulhou na transparência azul, e a sua nudez nadou uns bons inefáveis minutos. Mulheres e homens à volta tragaram o seu espanto com a displicência de quem bebe a última gota de uísque. A mulher nua saiu das venusianas águas, logo coberta pelo roupão. Não houve um ah! de espanto aos seus seios e delicada púbis, nem um sentido aplauso à nudez asséptica da jovem mulher americana.

Venham agora comigo ao cinema. A um filme do mais “bad boy” que o cinema francês já teve, Jean-Luc Godard. Fez um filme, “O Desprezo” com um produtor americano, o filme em que esteve mais perto dessa indústria, que ele tanto admirou e tanto odiou.  A vedeta feminina de “O Desprezo” é Brigitte Bardot, traço de união dos europeus como nunca mais houve. Filmaram e Joseph E. Levine, o pro­du­tor, ao ver a versão final, sem um nu pelo menos de Bardot, atirou-se a Godard. “Não há nus, não há filme nos cinemas!” jurou. Godard resignou-se e filmou Bardot nua juntando tudo numa só sequência, de mais de três minutos, a abrir o filme.

Por favor, vejam: é uma sequência gloriosa. Num quarto de sombras, cruzado por uma réstia de luz e filtros a roçar uma certa decadência, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão convincentes nádegas: ela mesma diz ao actor com quem contracena, numa pergunta que é também para cada espectador que esteja na sala: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”

Será preciso responder? Bar­dot está nua, deitada de costas, na cama. O actor, Michel Pic­coli, veste uma amarrotada t-shirt branca e contempla-a. Pala­vra a palavra, pela boca de Bar­dot, com o com­pla­cente acordo de Piccoli, é-nos dito cada cen­tí­me­tro do corpo dela. Ouvi­mos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Nunca se tinha “ouvido” um corpo como nesse filme se “ouve” o corpo de Bardot. Ouvimos os torno­ze­los, as coxas, o rabo, os seios, os joe­lhos. Ouvi­mos o corpo de Bardot como se ouvís­se­mos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros ver­me­lhos e azuis uti­li­za­dos por Godard mais refor­çam.

Ainda temos os ouvi­dos nas redon­das e tão belas nádegas e já Bar­dot nos per­gunta “o que pre­fe­res, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabe­mos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Georges Dele­rue, a responder-lhe com mais certeza do que Piccoli. E quando ela diz “amas-me?”, ouvimos um atarantado Piccoli, a cujo abraço o sinuoso corpo se escapa, responder: “Amo-te totalmente, ternamente, tragicamente!”

Ouvimos e ouvindo entra-nos pelos olhos uma nova forma de erotismo. Este já não é o erotismo voyeur das pernas de Marilyn que o sopro do metro de Nova Iorque expõe, levantando-lhe o vestido, em “O Pecado Mora ao Lado”. A nua Bardot é de um erotismo que sabe de si mesmo, um erotismo de cama e sem inocência: a cama em que desagua a dúvida, a crescente perplexidade masculina europeia. Uma profunda fenda filosófica separa a alacridade das pernas de Marilyn das nádegas de Brigitte Bardot.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios