
Que interessa o fim e o começo se o Novo Ano não for ano de mudança? E o que é a mudança se não mudarmos por dentro, se não mudarmos nós próprios? Temos, porém, horror à mudança. Medo, muito. É sobre a mudança e o medo dela que esta crónica me fala. A todos, um excelente 2026 e até para o ano.
«O povo já está a ficar…» E interrompo o que o Dr. Jerónimo Elavoko Wanga, ilustre militante da UNITA, ministro do governo de transição de Angola, em 1975, me vai já dizer, para antes confessar que nunca mais me esqueci, e cada vez mais me lembro, da frase lapidar com que então, a poucos meses da independência da terra amada que não me viu nascer, ele me escandalizou.
Depressa veremos o que é que «o povo já está a ficar», mas preciso que me dêem a mão e viajem comigo. Venham. Eu era um rapaz de Luanda que desaguara revolucionariamente no Lobito: professor de literatura no liceu, fazia comícios, anunciava o homem novo e, em plena terra do galo negro, o sonoro símbolo kwacha de Jonas Savimbi, proclamava a primordial pureza do seu inimigo figadal, o movimento do retornado poeta de um verso profético: «às nossas casas, às nossas lavras, havemos de voltar.» Voltámos todos.
Seja como for, no Lobito, Savimbi hospedava-se do outro lado da rua onde eu morava: se eu saltasse, do meu 5.º andar, cair-lhe-ia ao colo, e, eis o problema que estávamos com ele, eu andava a fazer uma insustentável algazarra e a arrastar a juventude.
E o que o Dr. Wanga, que os meus olhos então viram com o ar eriçado de uma hiena e agora vêem como um bom homem… repito, o que Jerónimo Wanga me disse foi: «O povo já está a ficar fodido convosco.»
Eu era um revolucionário rutilante: em boa verdade, só eu, sozinho, era uma flotilha a navegar mediterrâneos de utopia. Do alto da colossal e resplandecente sabedoria dos meus 21 anos proclamava o poder popular, a violência revolucionária, um mundo de que se varreria a abjecção da desigualdade, o ópio alienante de todo o passado canalha. Ai ué Nzambi, o futuro do vento leste, esse limpo e lavado sopro proletário-camponês, esse mundo de cantado amanhã, perfeito e imóvel para sempre, forever e forever de nunca acabar… eis o que o pesado coração e a leve cabeça me instigavam a proclamar.
Estou para aqui a deixar a minha crónica falar, mas não é bem isso que quero que ela diga. Vou corrigi-la. Nesses dias e tantos meses de 1975 (quantos foram?), uma faca trazia-me retalhada a alma. Da boca para fora, saíam-me as grandes parangonas revolucionárias, mas no tumular silêncio do meu coração recolhiam-se, protegidos e clandestinos, canções e poemas, filmes e livros. Disfarçado, metia-me por nocturníssimas vielas, para deixar tocar dentro de mim os adolescentes Beatles; o Keith Jarrett em Köln; um fado de «coração por aí por onde vais» até; uma carta da remota Pinhel com as tão deliciosas reaccionárias saudades de mãe, pai e irmã; o desperdício de versos burgueses de colher na boca e amor em visita.
Se era essa a metade da alma que eu queria, o que fazia, então, de mim o refém dos sórdidos túneis da revolução, que tentava enfiar pela garganta sem espinhas do povo? Que flotilha de presunção, sem água benta, me fazia esconder o intrincado e complexo mundo de milhões de pensamentos, afectos, dilemas, intenções e dúvidas – que eu sabia existirem! – agarrando-me a uma cartilha tão tansa como astuciosa?
Vaidade e medo, diria hoje, eis os ingredientes do mais feroz revolucionário. A vaidade de ser único, de ser guia e «educador», de arrastar um cortejo de condenados. E o que, quando se apercebe da armadilha, faz o revolucionário persistir é o medo de ser excluído por tantos companheiros, camaradas, amigos, palhaços.
Aos que têm medo de deixar cantar as dúvidas, os poemas, o tão antigo e sábio passado, o raio dessas coisas a que chamamos conforto, carinho e saudade, talvez não seja mau que ouçam a frase imortal que o ministro Wanga disse, em Luanda, terra amada em que já não irei morrer.