
Morrem-me os amigos, morrem-me também os mitos. Um dos mais puros era o de Brigitte Bardot. Não sei como cantá-la, logo a ela que cantou (bem antes de Jane Birkini) o «Je t’aime moi non plus», que Serge Gainsbourg compôs para o corpo e para a voz dela.
Não sei chorar um mito, muito menos o mito da BB. Despeço-me dela com duas crónicas. Leiam uma, à vossa escolha.

Crónica 1, E Deus Criou a Mulher
O pé descalço emociona sempre. Nada é mais pobre do que o sumário pé descalço. Minto. O pé descalço, na sua prístina nudez, também nos atira aos olhos com a sumptuária excentricidade do milionário, o exotismo de uma Cleópatra.
Na praia deserta, fascina-nos o mistério das marcas que outros pés deixaram na mesma areia que envergonhadamente pisamos. Esses «vestigia pedis» abrem-se à nossa inquieta imaginação: evitamos apagar os traços que tanto podem insinuar a mais extrema liberdade como a caminhada de um suicida.
O pé descalço emociona. Os pés descalços de Brigitte Bardot exigem uma emoção ajoelhada. Ajoelho-me eu e ajoelha-se Wim Wenders. Numa entrevista que lhe fiz no século passado, disse-me ter vivido a adolescência convencido de que a Bardot, de só a ter visto em filmes dobrados, falava alemão. Bardot caminhava, dançava de pés descalços, e falava com a mesma língua abstracta, duramente metafísica que Hegel entregou a Merkel.
Deixem-me dizer o que quero: falasse francês, alemão ou espanhol, o pluralíssimo europeu tinha então a mesma devoção: os pés descalços de Brigitte Bardot. Arrisco: os pés da Bardot eram mais europeus do que a cabeça de Jean Monnet. Os pés nus da BB corriam por Saint Tropez e inventavam a Europa, davam-lhe asas irreverentes, pedalavam uma veloz bicicleta. Com um erotismo europeu (havia, garanto, um erotismo europeu!) dançavam um mambo em cima da mesa de um caveau. Os pés nus de Bardot eram bem-vindos mesmo na livraria onde trabalha. E noiva, Bardot foi a noiva descalça.
Lembram bem, ainda não disse que filme era. Era “Et Dieu Créa la Femme”, história da órfã de 18 anos que a ingrata associação de menoridade e mau comportamento, ameaça fazer voltar à clausura correcional. No começo do filme, apresentava-a o preguiçoso movimento de uns pés descalços. Adivinhamos que o corpo daqueles pés está atrás do lençol estendido a secar ao sol. Roger Vadim, o realizador, revela, depois, num contracampo brutal, tal e qual Deus a criara, a suave linha senoidal do corpo de Bardot que o espectador tem logo vontade de transformar numa linha dentada.
Bardot comporta-se mal porque recusa o futuro. Ouço em francês o que Wenders a ouviu dizer em alemão: “Oh, l’ avenir c’est ce qu’on a inventé de mieux pour cacher le présent.” A hedónica Bardot vive com um gato, um periquito e um coelho. O coelho tem nome: chama-se Sócrates. Não invento: é coelho e é Sócrates. Quando, com promessa de casamento, troca o presente pelo futuro, BB liberta os animais no campo. Descobre depressa ter ido ao engano. Ainda tenta recuperar os bichos. Grita pelo coelho chamado Sócrates. Em vão. Já corre, dois em um, do presente de Bardot para um país sem futuro.

Crónica 2, Já sou mulher?
Brigitte Bardot é a antítese – antítese marxista, mesmo – de Marilyn Monroe. O léxico de BB nem sequer incluía a palavra “sexo”; já o léxico de Marilyn não precisava de mais nenhuma.
Têm ambas as mais subtis e maravilhosas curvas. Mas há uma cruel luta de classes a separar a lábil e citrina geometria de cada uma delas. Bardot casou virgem, com o enfant terrible Roger Vadim. Era pelo menos o que pensavam os selectos pais dela. A forma como Bardot casou virgem sem ser já virgem é que faz toda a diferença entre o mundo dela e o de Marilyn.
Os pais tinham autorizado o namoro de BB e Vadim. Namoro à vista. Para dialécticos saltos qualitativos, encontravam-se às escondidas. No primeiro encontro BB perguntou ao amado: “E agora, já sou mulher?” Ele foi sincero: “Já és 25%.” Ao segundo encontro, a mesma pergunta e Vadim, ofegante, terá dito: “Já és 75%.” Ao terceiro encontro, ele disse-lhe o que ela já não precisava que ele dissesse e Brigitte, abrindo as portadas da varanda de um recluso quartinho, gritou para uma estreita rua de Saint-Germain-des-Prés: “Já sou mulher.” Os aplausos do bairro fizeram-na perceber que estava deliciosamente nua.
Bardot era uma nua menina de liceu, desses franceses anos cinquenta em que o amor se começava a conjugar transitiva e intransitivamente com o sexo. Era inocente e, pasme-se, guardou sempre a inocência. Fala-se muito do pecado católico, europeu, mas há muito mais pecado e ínvios sentidos no mundo WASP que deseja Marilyn, e nesse desejo a tortura, do que no mundo de primeira comunhão e crisma de BB.
Vadim casou com Brigitte. Filmou-a em “Et Dieu Créa La Femme” venusiana, amoral. Deus criou a mulher, Vadim criou o mito. E estava Vadim com o mito em Roma, num hotel, quando uma suíça de indescritível orografia, que namorava um actor amigo, veio ter com eles, a chorar, amorosamente insolvente e sofrida. Trouxeram-na para o quarto deles e, havendo só uma cama, dormiram juntos. Todos juntos e fé em Deus, porque a inocência de BB não admitia cá «bouquets». Vadim, nas memórias, conta que estava sentado num cadeirão e elas as duas ingenuamente nuas na cama. Olhava, siderado com os claros-escuros delas, como siderado se fica a contemplar uma Madonna de Bellini. A inenarrável suíça era Ursula Andress. Tudo o que fizeram foi rir-se e conversar muito.