O sex-appeal de uma desvairada fortuna

Talvez o homem seja o mais desacompanhado de todos os animais. Mas subo já a parada: não houve, na história da humanidade, homem mais desacompanhado do que o ultratrilionário Howard Hughes.

Tinha eu 15 anos, deambulava a minha dengosa pobreza remediada pelas ruas da cidade de Luanda, e lembro-me do meu preclaro mentor e barbeiro Mário Prazeres me contar a história de outro barbeiro, de uma vilória alentejana, «lá em Portugal», que não só a si mesmo se desacompanhava, como desacompanhava a própria mulher. Tinha pelo sexo menos interesse do que qualquer um de nós por avencas incandescentes.

Era o que a mulher, com a tristeza de um lenço verde a cobrir-lhe o cabelo, contava a quem lhe oferecesse um dedo de ouvido de atenção que fosse. «Mas – julgo que foi o meu amigo Mário a interpelá-la – a senhora tem dois filhos. Não me diga, senhora do lenço verde, que não são dele.» E ela num resignado arrebatamento: «São dele, são, menino Mário. Mas a canseira que eu tive para que ele mos fizesse!»

Howard Hughes não precisava de se cansar. Morreu-lhe cedo o pai e ainda não tinha 20 anos caiu-lhe nas mãos uma herança analfabeta. Veio para Hollywood com uma mulher tão nova como ele. Depressa se divorciou e deu-lhe para fazer duas coisas: aviões e filmes. Eram a sua paixão. A que se juntava uma febril necessidade de companhia feminina.

Eu peço aos leitores que olhem para o Howard dos anos 20. Era bonito, alto, porventura pouco articulado e tendencialmente silencioso, mas somava a tudo isso o sex-appeal de uma desvairada fortuna. Um rio de mulheres crepitava aos seus pés e a verdade é que se agarrasse num telefone às quatro da manhã – oh, bem bom – não havia uma actriz que não acorresse a amaciar-lhe a ineludível solidão.

Lana Turner, uma das mais fatais das «femmes fatales» de Hollywood, intérprete da mulher adúltera do primeiro «O carteiro toca sempre duas vezes», uma vida cheia com sete casamentos fora os concubinatos, foi uma das actrizes que lhe atendeu o telefone. Confessou que Howard «era um tipo de quem se gosta por ser agradável, mas não era especialmente estimulante». Julgo que a caligrafia de Lana se percebe com facilidade e ainda mais se a ouvirmos dizer que «Howard sussurrou-me que tinha preferência por sexo oral… e eu disse-lhe que não estava nada interessada e ele não pareceu incomodar-se».

Lana disse-o e essa peça botticelliana de menagerie feminina que foi a actriz Gene Tierney prova-o: Howard gostava de se apresentar em público com a mais loura refulgência de Hollywood, mas no fim da linha apreciava mais as mães do que as filhas que o acompanhavam. Queria era falar horas perdidas com a mãe de Lana e à mãe de Gene encheu-lhe 60 metros quadrados de uma sala com gardénias. «Cheira um bocadinho a morte», disse a velha senhora.

Foi Bette Davis que revelou o segredo de Howard, esforçando-se tanto como a mulher do lenço verde do modesto barbeiro alentejano. Bette era casada e o marido, músico, passava as noites a tocar num hotel nobre de Hollywood. Mas desconfiou e mandou pôr um micro no quarto onde Bette e Howard se encontravam. Ficou numa carrinha ao lado a ouvir e descobriu que Howard tinha um problema ejaculatório – poupo-vos a pormenores. Irrompeu pelo quarto adúltero e ameaçou Howard que o tentou esmurrar, mas falhou. Bette ululava contra o marido. Howard, aterrado com escândalo, pagou-lhe o que era então um Euromilhões de 75 mil dólares. Bette Davis, com a nobreza ríspida que era seu dom, devolveu, dólar a dólar, a miserável chantagem do marido e Howard mergulhou ainda mais na sua surda solidão.

Do manto de Gradiva ao colo da Guerra e Paz

Esta é a primeira vez que escrevo em nome da Gradiva. E, logo a seguir,
a newsletter natalícia da Guerra e Paz. Com ternura, para quem gosto e para quem admiro.

Do manto de Gradiva, cinco livros de Natal

Tenho a mão a tremer. É a primeira vez que escrevo aos leitores da Gradiva. Se se lembram de Fanny e Alexandre, de Ingmar Bergman – é um filme de Natal, ó se é!  – lembram-se, é claro, da cena em que o pequeno Alexandre visita uma loja de brinquedos, autómatos, objectos mágicos, uma autêntica gruta de Ali Babá, guiado pelo dono, o judeu Isak Jacobi, amigo da família. É uma cena de maravilhoso puro, de desmedido deslumbramento. Assim me sinto eu, pequeno Manuel, nesta loja mágica chamada Gradiva, criada pelo meu amigo Guilherme Valente. 

O Guilherme pede-me, exige-me, que eu escolha à vontade: «Leva e lê, este Natal.» Agarro logo essa intriga de cem anos, essa viagem e  ocultação de um poema que atravessa o romance de Ian McEwan, O Que Podemos Saber. Que força, que dom poético move cada um de nós, que somos afinal também personagens de McEwan, e nos permite sobreviver ao caos, à iminência da catástrofe, ao crime e à vingança, à doença e ao próprio amor? Leiam-no comigo, este Natal. 

E já o Guilherme me pede que procure outro dos seus objectos mágicos. Tropeço no Nome da Rosa, outro Nome da Rosa, aquele que ao nome de Umberto Eco junta o nome de Milo Manara, mestre do traço erótico. É uma das BD do Guilherme, dessas raridades que ele cultiva: imagino-o sentado com um Eco vindo do reino das sombras e com Manara, a pedir-lhes exuberância, riqueza criativa, mistério e desejo. Dessa matéria se faz este volume BD de O Nome da Rosa.

E sigo viagem com o meu amigo e mestre editor. Desembocamos no cosmos. Recebe-nos Stephen Hawking. Na mão, o seu A Teoria de Tudo: Origem e Destino do Universo. Como é possível que o pensamento humano seja tão claro, que alguém possa escrever argumentos tão luminosos e persuasivos, que fazem com que eu me sinta uma criança de cinco anos encantada? Talvez, afinal, o mundo da ciência seja o verdadeiro mundo do conto de fadas, com o seu universo em expansão, buracos negros e Big Bang.

«Manel – diz o Guilherme – este é para ti!» e dá-me As Lições dos Mestres, de George Steiner. E eu agradeço-lhe, intrigado com o que é o saber e como se transmite. Intrigado também com o rumor subterrâneo que liga, afinal, o saber e o poder. O que é ser um mentor? Mestres, aponta Steiner, foram Sócrates e Jesus, Confúcio, Dante ou Shakespeare. E quem foi, em filosofia o nosso mentor, Guilherme? O magnífico Trindade Santos e o Platão que ele nos ensinou a ler? E o que é ser um discípulo? Conseguirei eu ser, como editor, algo que se pareça a um teu discípulo?

Acabaria assim se Guilherme Valente, editor de meio-século, fundador desta gruta mágica, não me fizesse levantar a cabeça, obrigando-me a olhar de frente para Klara e o Sol, do Nobel Kazuo Ishiguro. Estou de olhos nos olhos com Klara, a amiga andróide. No céu, o Sol contempla-nos. Indiferente à nossa natureza, ilumina-nos, aquece-nos, dá-nos energia. Qual de nós o ama mais?

Foram estes os cinco livros de Natal que trouxe desta primeira viagem ao bosque de frutos encantados que se chama Gradiva, jardim que, com minucioso e fremente amor, Guilherme Valente criou e de que quero agora ser  fiel jardineiro.

Livros Guerra & Paz que serão sempre de Natal

Há prendas, quase uma confissão sussurrada, que só se dão a quem muito se ama. Ou talvez a quem queremos que muito nos ame. Há livros que são essas prendas, suspiros de Natal, afago discreto de um dedo a deslizar na arrepiada pele. 

E se o Natal é mesmo essa onda devastadora de tudo se amar, até mesmo os inimigos, mais do que oferecer a outra face, por que não oferecer, a amigos e inimigos, a surpresa da intensa beleza que vem da China? 

Ouçam, leiam bem o título deste livro do modesto funcionário público do século XIX chinês que foi Shen Fu: No Fio Inconstante dos Dias: Memórias de Uma Vida Flutuante. Quanta ternura e quanta incerteza não peregrinam por esses dias prometidos, por essa vida navegante? É uma história de amor, com concubinas e barcos de flores, com um boémio curso de vinho de arroz, e é também, em fundo, a paisagem chinesa, rios e montanhas, jardins e palácios, amor e morte.

Outra prenda, toda em veludo, é O Crisântemo e a Espada, essa declaração de amor que a antropóloga Ruth Benedict dedicou ao Japão e aos japoneses. Honra e dívida, pais e filhos, devoção filial, fica tão lindamente exposta toda a delicada reserva japonesa, a íntima filigrana de que é feito o povo do sol nascente. 

A antiquíssimas aventuras é que nos leva outra mulher, Jessie L. Weston. Escreveu Do Ritual ao Romance só para nos mostrar de quantos e tão remotos rituais vêm os nossos ideais de cavalaria, a salvação de donzelas, a morte do rei; de tão longínquo e tão enraizado paganismo vem também o que ainda nos sobra de cristianismo. Lê-se como uma novela da Távola Redonda e foi neste Do Ritual ao Romance que se inspiraram A Terra Devastada de T. S. Eliot e o Apocalypse Now, de Coppola. 

A quem queremos oferecer o corpo, a quem queremos que nos ofereça o corpo é que entregaremos a Cartografia do Desejo, o livro com as mais libérrimas fotografias de Alfredo Cunha. Não é apenas o aroma da nudez que Alfredo Cunha nos oferece: em cada fotografia sua está o essencial de um corpo, o seu movimento, e sobretudo a projecção do seu desejo. O desejo é a preto e branco, e é de lençol de seda a suavidade do papel gardapat, cama em que cada fotografia se deita. 

Para acabar, deixem-me ir buscar o sorriso de fina ironia de Agustina Bessa-Luís. Tomando nas suas mãos 12 episódios da nossa história de mil anos, Agustina somou a essa história a glória e o ciúme, a lealdade e a traição, a espada e o punhal. Agustina romanceou, delirou, dramatizou, ironizou, com liberdade prodigiosa, um dos mais espantosos e escondidos dos seus livros, Fama e Segredo na História de Portugal. Passe o Natal com este livro que até ao Menino Jesus de Caeiro arrancaria um sorriso trocista.

Manuel S. Fonseca, Editor