
Arde, baby, arde! Do fogo vem uma inconfessável tensão dionisíaca. Quase se apalpa a devassidão relampejante que atravessa o coração do pirómano. Retornados do império, viviam os meus pais em Pinhel, era de noite e houve um incêndio perto do Coa. Fui com a Antónia ver a frente de fogo: era como se a boca do deus da noite – ou será um demónio? – se abrisse na insuperável beleza e fúria de labaredas a correr pela floresta de breu. As chamas iluminavam a beleza juvenil da Antónia: talvez nunca eu a tenha visto tão bela. Como se fosse uma Scarlett O’Hara. E já lá vou.
O pirómano já vem de muito longe. O imperador chinês Qin Shi Huang talvez tenha sido o autor da primordial queima de livros. Três séculos antes de Cristo, para sufocar as cem escolas de pensamento que floresciam na China, o imperador mandou queimar todos os livros, com excepção dos que tratavam de medicina, agricultura e, ora bem, adivinhação. Com um toque de originalidade: queimou os livros e enterrou vivos os autores.
Hitler e Mao Tsé-tung, o nazi e o comunista, não prescindiram das credenciais pirómanas. Hitler, de braço estendido, e em espasmos arrebatados, incitou os seus meninos nazis a esturricar as decadentes obras antigermânicas. No mês de Maio de 1933 os incêndios de livros iluminavam as praças e ruas alemãs. Os mesmos gritos, os mesmos risos de hienas, nos olhos o mesmo fulgor assassino, os jovens comunistas, respondendo ao levantado punho fechado de Mao, queimavam os «quatro velhos»: antiguidades, arquitectura, pintura e livros foram entregues à boca insaciável do fogo purificador.
Mas pode no fogo ferver outro impulso que não seja o do motim e o da destruição? Ainda se lembram, e já me estão a dizer que sim, do «E Tudo o Vento Levou»? O produtor desse filme foi David O. Selznick. Era daqueles tipos que tinha a arrogância dos sonhadores ambiciosos.
Quis e fez de «E Tudo o Vento Levou» uma produção megalómana. Já tinha sob contrato Clark Gable para o papel de herói. Mas ainda andava às aranhas para descobrir a sua Scarlett. Tinha também um estúdio no qual estavam as sobras dos cenários de filmes como «King Kong», «O Jardim de Alá» ou «O Rei dos Reis». Precisava de limpar aquela tralha. O decorador do filme, o genial William Cameron Menzies, disse-lhe: «David, o mais barato é queimarmos este lixo.» A perspectiva do fogo iluminou os olhos de Selznick. Imaginou que se poderia filmar tudo e ser essa a cena do holocausto de Atalanta, cena central do filme.
Foi um ver se te avias. Puseram tubagens a atravessar os velhos e abandonados cenários, com um produto altamente inflamável, ligando-as a uma consola, cada botão podendo deflagrar o incêndio de um dos cenários. Estavam ali 50 bombeiros, 20 polícias, 200 empregados do estúdio, e três duplos de Clark Gable que, em pontos diferentes do incêndio salvariam a ainda inexistente Scarlett. Sete câmaras filmaram aquele apocalipse de fogo.
Até a mãe, já viúva, Selznick trouxe para esse espectáculo que seria ele mesmo a comandar, os dedos nos botões da consola. E o irmão, Myron, viria com convidados. Myron atrasou-se e Selznick teve de começar. A noite de Los Angeles encheu-se de brilho, explosões, cometas a riscar o céu e um Selznick arrebatado, peito inflado, a dar ignição, botão a botão, à miríade de fogo.
É então que chega Myron, com uma mulher desconhecida: «David, apresento-te a tua Scarlett O’Hara.» Era Vivien Leigh, no rosto dela, afogueado, tremulava a luz de mil chamas. E jura Selznick: «Olhei e soube logo que era ela, a Scarlett.» Só no fogo fulge, assim, a mais escancarada verdade.




