Quando acabam as canções

Ali ia eu atarefado com a minha morte, as rodas da maca entoando uma música mórbida e a riscar o asfalto das áleas do hospital Curry Cabral. Era de noite e levavam-me, estrelas e lua a decorar o céu de Dezembro de 2020. Arrependo-me de não ter pensado que era à última vez que as via, às estrelas e à lua. O que me rasgava a cabeça era um cometa de ironia: nunca ter visto no cinema um tipo ser levado de maca num hospital pelo meio das árvores, entre terra e céu, os esgazeados olhos postos no cosmos.

 Estava agarrado a essa originalidade, a achar que o travelling que embala o Al Pacino, no «Carlito’s Way», do De Palma, era um menino ao pé do meu deslumbrante plano-sequência, que tomara o Scorsese, quando entrei no bloco dos cuidados intensivos.

«Estou a descer», pensei. Desce-se para a morte e ao passar da maca para a cama, mil tubos, o pólo norte enfiado no nariz – o gelo que é respirar-se junto à barriga da eternidade – convenci-me que estava nas caves hospitalares, o que a minha desaustinada mente via como antecâmara da definitiva e perene escuridão.

Sabia que ia morrer. Nesses dias, no mundo, e para que conste, nós humanos morríamos como tordos. Gostava de ter tido, então, a desprendida serenidade de um D. H. Lawrence, que, olhos nos olhos da morte, disse: «Penso que é hora de me darem alguma morfina!». Na minha rasteira trivialidade, de mim para mim, disse: «Que chatice!» A intranscendência de um «que chatice» precedeu a minha ingloriosa rendição. Desisti e deixei-me ir à morte. Fez-se escuro e eis o que quero dizer: a morte vem de dentro de nós. Estava uma sala asséptica, as ronronantes máquinas com apneias de pis e pis, pi e pi e pi, uma limpeza pristina de antes do big-bang, e dentro de mim só escuridão e monstros.

De onde vinham os gigantescos fantasmas com capas de Batman, de onde vinham os Polifemos voadores que pareciam ceifar-me a cabeça e furar-me os olhos, de onde vinha essa mistura de extraterrestres com titãs, essas naves voadoras incansáveis que, de repente, eu comecei a abater – que irritação com Deus, que irritação com o portentoso Além me fez empertigar e sacudir esse obscuro Hércules sem rosto que já me agarrava pelas nádegas como quem leva um presunto?

  Não sei em que ponto foi dos cinco dias e cinco noites em que a parafernália galáctica dos pesadelos me furava o peito e o ventre, me sugava as entranhas, mas sei que no meio desses mil rostos sem rosto da morte – e nenhum era a Senhora de Branco, que alguns disseram tê-los visitado – um humilde acorde musical soou.

Uma canção modesta veio de visita à minha escuridão. Não sabia cantá-la, mas como uma agulha espetou-se-me esta expressão, «o inteligente». Estavam os Darth Vaders num hipersónico coro assassino à minha volta, quando na minha cabeça se formaram os versos completos «e diz o inteligente / que acabaram as canções».

Eis a rutilante má-criação com que voltei à vida: «Acabaram, mas é o caralho.» Com a «Tourada» do Fernando Tordo, versos do Ary dos Santos, eu soube que as canções não tinham acabado. E enquanto cantava, dentro de mim, que as canções não tinham acabado, os monstros, Titãs, Polifemos, Darth Vaders, enfiavam o rabo entre as pernas, Deus e o portentoso Além batiam em retirada.

Voltei, radiante e tão fraquinho. Só então descobri que o bloco dos cuidados intensivos era num andar superior – já lá voltei a vê-lo – o que mostra que afinal só sei que nada sei sobre a morte: a morte talvez não seja um caminho a descer; a morte talvez seja sempre a subir, ascensão de que somos os persistentes alpinistas.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios

Livros, luxo, calma e volúpia

Esta é a newsletter que mando a quem gosto, mas sobretudo a quem muito gosta de livros. Dedico esta newsletter ao editor Guilherme Valente, meu amigo, que me passou o testemunho, pondo sobre os meus débeis ombros a tremenda responsabilidade de dirigir, a partir de agora, a GRADIVA.

Os meus livros de Outubro

Talvez seja o mais bonito, o mais lúcido e o mais angustiado Outubro que já tive como editor.

Deixem que comece pela paixão: um dia, na casa californiana de Jorge de Sena, a senhora dona Mécia emprestou-me o exemplar de From Ritual to Romance, o maravilhoso ensaio antropológico de Jessie L. Weston. Nunca lhe devolvi o livro, mas hoje ofereço aos leitores portugueses a edição dessa preciosidade que aparece em filmes como Apocalypse Now ou The Doorso Mito de uma Geração. Chama-se Do Ritual ao Romance e ensina-nos que o que pensamos e fazemos vem de um tempo antiquíssimo. Somos, ensina-nos Jessie L. Weston, muito mais pagãos do que os cristianíssimos cavaleiros da Távola Redonda poderiam pensar. Querida Dona Mécia, devolvo-lhe, agora, o seu livro, finalmente publicado em Portugal, nesta edição da colecção Os Livros Não se Rendem, que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações vão levar a toda a rede nacional de bibliotecas.

Tão bonita a Cartografia do Desejo que Alfredo Cunha, um dos nossos maiores artistas fotógrafos, quis oferecer aos leitores portugueses. Há uma edição muito limitada, em capa dura, grande formato, papel de deuses, impressão quase inefável, e há uma edição em formato mais pequeno, de se trazer junto ao coração, linda de viver. Um prefácio de Valter Hugo Mãe e os textos de Ariana Aragão entrelaçam-se com fotografias de corpos nus, corpos primordiais, corpos a consumirem-se na subtil vontade de se fundirem noutros corpos. Um livro que sem o mecenato do dstgroup não aspiraria a tanta beleza.

«Onde me encontro? Que mundo é este a que estamos confinados!?» Com esta exclamação começa um dos mais sofisticados romances que já publiquei. Amadeu Lopes-Sabino, seu autor, deu-lhe por título Azul da Prússia, e leva-nos, sempre com esse poderoso veneno que todo o azul da Prússia oculta, de Portugal ao III Reich, do Brasil à URSS, num arco de tempo temperado por um léxico mais perto do murmúrio do que do grito.

Fernando Paulouro das Neves reincidiu: escreveu agora  As Sombras do Combatente, glorificação de uma figura real, Eduardo Monteiro, um clandestino veterinário português que se bateu contra o ditador Franco e que foi irmão de armas da Resistência francesa aos nazis. E contra Salazar, claro está.

Vingança em estado puro e cru é o ingrediente que Riley Sager usa para começar este Treze Horas para Chicago, um thriller todo criminosamente tricotado no perfeito huis-clos que é um comboio. Disse que o comboio é de luxo? Está dito. Não digo é quem mata, quem sobrevive, quem salva. Não digo.

E agora, dois ensaios lúcidos. Com a serenidade e clareza que marcam a sua argumentação, João Pedro Marques escreveu Reparações e Outras Penitências Históricas, uma incursão frontal sobre temas como as reparações históricas, a escravatura e o futuro do ensino da história em Portugal. Corajoso? Arrisco dizer que é apenas verdadeiro.

Eu prometi angústias. Vamos e vejamos. António Costa Silva escreveu Angola aos Despedaços: 50 Anos Depois, Que Futuro?balanço de 50 anos da independência da terra amada em que em belos despedaços deixei a minha infância. Este é um livro de amor: uma análise rigorosa de tanto que correu mal na economia e política angolanas. Mas onde está também o que Angola fez bem. O duro livro em que se casam amor e verdade

E está feito: fechámos o projecto Três Séculos de Economia Portuguesa, que começou com o apoio da CCP, Confederação do Comércio e Serviços, e se converteu em livro com o mecenato da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações. Chegam aos leitores os dois últimos dos cinco tomos da colecção, ambos escritos pelos economistas José Félix Ribeiro e António Mazoni. Um é A Grande Transição da Economia Portuguesa: Do Império para a União Europeia, que nos faz passar pelo 25 de Abril, entrada na CEE, do euro até ao presente. O outro, O Século XXI: Portugal e as suas circunstâncias, passa pela angústia do pedido de ajuda financeira e pela proposta, com inteligência e bom-senso, de um caminho de futuro para Portugal.

Dez livros de Outono, dessa coisa, o livro, que não é mais do que «ordem e beleza. Luxo, calma e volúpia», como alguém disse, no meio do spleen de Paris.

E não posso deixar de falar do que anda a fazer a Rita Fonseca na Euforia. Começo pela pouca santidade do Santo, de Sierra Simone, autora que já roçara o escândalo em Padre e em Pecador. Fecha agora a trilogia de muitas confissões e ainda mais proibições. Romances, portanto. Portanto? Portanto!

Navessa Allen, se no romance anterior estava Às Escuras, neste novo romance de Outubro da Euforia está De Joelhos. São títulos tão promissores como inquietantes, das mais bem-sucedidas expressões do dark romance: a autora já passou o milhão de exemplares vendidos.

Manuel S. Fonseca, editor 

O dia em que não morri

«Dê um abraço ao seu marido.» Já eu tinha a máscara de oxigénio a cobrir-me nariz e boca, foi o que o técnico do INEM disse à Antónia. Por delicadeza ele não disse «Dê o último abraço ao seu marido».

Eis o que confesso a quem me leia: mete-se em nós um silêncio de porcelana quando começamos a soletrar as cinco letras da palavra morte. Dois dias antes descobrira que tinha covid. E em 48 horas, nesse crudelíssimo mês de Dezembro de 2020, a infecção galopou. Ficou rude o meu «murmúrio vesicular»: sibilos, roncos, tosse seca atropelavam-me a respiração. Deitado, eu era uma camélia infecta e gelada. De pé, estertores crepitantes vinham do líquido túmulo que pareciam ser, então, os meus pulmões.

Já depois da Antónia e eu nos arrancarmos do assombrado e órfico abraço, de dentro do seu asséptico uniforme o homem do INEM perguntou: «Consegue caminhar pelo seu pé ou levamo-lo de maca?»

O que é prodigioso no mais humilde ser humano é o subterrâneo fascínio pelo desconhecido. Eu devia ter dito: «Consigo, mas não quero! Jamais caminharei pelo meu pé para a morte…» Porém, uma melancólica atracção pelo grande exterior, um obscuro desejo pela paisagem nocturna de branca lua seduz-nos e caminhamos dóceis, mesmo em direcção à morte, os pés tão doentes como a doente rosa de Blake.

Lembro-me que as urgências do São José pareciam a antecâmara do inferno. Doenças rutilantes sentavam-se de garras abertas ao colo da vertigem de outras doenças. Um grito, «Senhora enfermeira, tenho de ir à casa de banho», punha um acorde trivial e pícaro na obstinada música grave da crua dor daquela urgência.

Quanto éramos? A luz mortiça não deixava ver. Sentado num cadeirão, o cateter nasal a empurrar oxigénio para o meu peito relutante, o que sentia era o laborioso afã humano pela sobrevivência, cada corpo como uma centopeia ou um polvo, cem pés ou ventosas a colarem-se à húmida vida, tão escorregadia.

 Ia a madrugada a meio – as peregrinas wee hours – outra ambulância tirou-me das urgências e levou-me para o Curry Cabral. Dias depois, numa maca a correr pelas áleas que separam os blocos do hospital, outra vez à noite, como se a doença e os serviços hospitalares tivessem entrado na clandestinidade, dois maqueiros levaram-me da enfermaria para o bloco de cuidados intensivos. Via da maca as nuvens, céu, estrelas, talvez a acesa ponta da lua entre a copa das despidas árvores que antecedem o Natal.

Foi então que alguém me disse «Apresento-lhe a morte». A morte é-nos apresentado por eufemismos: pedem para despirmos a nossa roupa, para entregarmos o telemóvel. Percebi que não poderia mais ligar à Antónia, que deixaria para trás amigos e família, os livros e as salas de cinema, sem o consolo de um adeus, de uma última vez.

Entregava o meu corpo nu, como no dia em que nasci, esse dia de que nenhum de nós sabe lembrar-se, entregava o meu corpo nu, que não era já todo o meu corpo, 12 quilos roubados.

Para onde teriam ido esses 12 quilos, quase 20% roubados ao meu identitário eu? Iriam à frente, pelo seu pé, a caminho do lençol escuro da eternidade? Nu, o pobre pénis encolhido, zézinho convertido numa minúscula couve de Bruxelas, nessa nudez e incomunicação, sem um sopro de ar no peito, soube que ia morrer.

Não morri. Hei de contar porquê. Talvez para a semana. Voltei do vale das sombras de mil mortos e saí, minha segunda natividade, a 24 de Dezembro, para uma noite de Consoada só com a Antónia, obrigado a 20 dias de quarentena, mas vestido, o modesto pénis a querer assobiar, rosto oferecido à nova vida: vou agora fazer cinco anos.

Publicado no Jornal de Negócios