Tiros em espelho

O primeiro tiro à Kennedy foi o rei português Dom Carlos quem o experimentou. Disparou-o, antecipando-se umas boas décadas a Lee Oswald, a Winchester modelo 1907, de Manuel Buiça. Era, o Buiça, um atirador exímio; joelho no chão, o tiro saiu-lhe certeiro ao pescoço real, dando ao Senhor Dom Carlos, dizem, morte imediata. Os outros dois tiros que vararam o rei foram sumptuários.

Há nessa cena um lirismo e um heroísmo muito portugueses. Vejam bem: a rainha Dona Amélia tenta afastar os matadores assestando-lhes nas ventas com um singelo ramo de flores; quem a ouviu garante que ela, enquanto esbracejava, ia gritando, «Infames, infames». Ao lado da rainha-mãe, o príncipe herdeiro respondeu de pistola em punho, sendo o seu improficiente heroísmo logo abatido por um balázio da Winchester, que lhe atravessou a face e saiu pela nuca, espelho do tiro que, mais de meio-século depois, iria entrar pela cervical de Kennedy e sair-lhe pela laringe.

É melhor perecer com as vestes carmim da tragédia ou sobreviver pelo ridículo? Falemos do rei inglês Eduardo VII, que um parque de Lisboa celebra. Ainda ele era só Príncipe de Gales, sentou-se no comboio que o ia levar de Bruxelas à Dinamarca, em 1900, quando um anarquista, Jean-Baptiste Sipido, na verdade um puto de 15 anos incendiado pela matanças da Guerra dos Bóeres, saltou para o estribo e disparou dois fogachos que passaram a dedos da cabeça de Eduardo. O príncipe vai em vôo picado, asas abertas com um pato, e sai-lhe este desabafo: «Foda-se que já levei com uma bala!»

E não. Não levara com bala alguma, razão pela qual o tribunal considerou o puto Jean-Baptiste «incapaz de dolo», tanto era o seu indiscernimento, se assim lhe posso chamar. Teve, porém, o discernimento e o bom gosto de fugir para Paris, antes que o pusessem num reformatório. A gloriosa França acolheu-o com o estatuto de refugiado político.

Podia falar do atentado a tiro contra Lenine. Mas não, falo da sua segunda morte. Havia um frequentador da Cinemateca, que era a pálida cara chapada do primeiro ditador soviético. Tão doce como pálido, viveria com uma sopa por dia e a pobreza de um Bartleby, um obsessivo amor pelo cinema. Chamávamos-lhe Lenine, e um dia, como alguém dirá de nós outro dia, olha, morreu. A Antónia, minha augusta mulher, entra a chorar no gabinete do João Bénard: «Morreu o Lenine.» O João, sabedor das inóspitas inclinações políticas da Antónia, espanta-se: «Ó Antónia, o Lenine já morreu há um século.» E logo a Antónia, em choro convulso: «Não é esse. Morreu o nosso Lenine.» Não há tiros no silêncio do cinema.

Publicado há umas semanas valentes no Jornal de Negócios, no Weekend

O charmoso xixi feminino

Já a ditadura de Marcello Caetano estava de língua ressequida e foi quando eu tive a minha primeira solidão. A solidão, recordo aos mais felizes, não é estar sozinho.

Eu acabara de chegar a Portugal, de onde saíra aos 5 anos, pouco mais do que de bibe. Ao contrário de Billy Wilder, esse austríaco a quem vou implorar que seja ele a falar-vos, eu falava a língua. Não falar a língua é a primeira janela virada para a solidão, confirma o austríaco que tanto havia de filmar Marilyn: olhos, lábios, seios, nádegas e pernas, e nunca por esta ordem, reconhecendo ao corpo dessa extraordinária mulher uma solidão que mais ninguém tão bem lhe reconheceu.

É certo que eu falava a língua, mas no quarto alugado de Lisboa, encostado à estação do Rego e aos seus incompreensíveis comboios, não cabiam as esquindivas e os uatobos, esses espantos caluandas da minha adolescência, nem a cambada de «k» – «kome é ké meu kamba?» – com que ajindungávamos a língua. Lisboa transbordava e eu era a gota invisível que derrapava pelo lisinho vidro do copo abaixo. A minha solidão durou uma semana.

A fugir de Hitler, foi assim que Billy Wilder chegou a Hollywood. Embrulhado, diga-se, num equívoco maior do que o cesto do bebé Moisés a flutuar no rio Nilo. Como Moisés, Wilder fora contratado para escrever guiões. Os de Wilder seriam guiões para filmes, o que ele sabia escrever: só lhe faltava era saber falar inglês. Eis a solidão de Wilder: os estúdios de Hollywood, atarantados, arrumaram-no, no Natal de 1935, numa cave, na antecâmara do toilete das mulheres, num dos hotéis de Sunset. Elas vinham aliviar o sibilante e charmoso xixi ou retocar a faiscante doçura da maquilhagem, e ali estava o homenzinho austríaco – «funny» em inglês, ridículo em português –, atormentado pela insónia, que os intrigados risinhos femininos mais isolavam nas perdidas horas da noite escura.

A solidão de Wilder durou três anos. Ou menos. O arrebatador sucesso de «Bluebeard’s Eight Wife», e logo a seguir da obra-prima anticomunista, toda debruada a Greta Garbo, que é «Ninotchka», filmes que Wilder escreveu em inglês, mostraram que a genialidade é poliglota. Wilder quis então, já era 1939 e já lhe fora concedida a amenidade de ser americano, relembrar, numa pequena comédia, a solidão da cave e do rumor do xixi feminino. O filme chamou-se «Hold Back the Dawn» e a cena é premonitória: já perceberão porquê, convido Donald Trump a ser o elefante na sala.

O herói do filme, o actor francês Charles Boyer, é um romeno, um alegre gigolo, digamos assim, que chega à fronteira de Tijuana e, tal como os imigrantes mexicanos, fica retido, sem visto. Desespera e espera, ainda Trump não nascera. Confinado ao quarto rasca, roça-se pelas paredes, preguiça no colchão miserável, a mesma solidão e invisibilidade que Wilder saboreara à porta de um WC. Sabe-se lá de que frincha, aparece uma barata. Boyer olha para ela, para essa irrupção insolente e interpela-a: «Mas onde é que julgas que vais?» O silêncio culpado da barata não o comove: «Tens passaporte? Tens visto? Mostra-o!»

Boyer, cuja «fine bouche» nunca terá mordido a solidão de Wilder, recusou fazer a cena. Reclamou todos os galões de vedeta. A discussão com Wilder foi azeda: «Ninguém fala com uma barata! Queres fazer de mim estúpido. Vai-te embora, antes que te mate!»

O actor francês roubou ao mundo uma cena pungente: a fronteira da invisibilidade e da inumanidade, quando alguém já não tem mais nada que o ligue à vida do que um inusitado insecto rastejante ou o som nostálgico do distante xixi de uma mulher.

Publicado no Weekend, o suplemento de todas as 6.ªs do Jornal de Negócios

Mulher nua, mulher vestida

É mesmo ali, na Argélia e Marrocos. Há uma mulher nua outra decentissimamente vestida. A mulher nua está livre, em plena rua, a mulher vestida despejada na prisão.

A mulher nua vive em Sétif, cidade argelina de predominância cabila (berbere). A mulher nua é uma estátua erguida numa fonte de Sétif. De seios lindos, coxas expostas, ousada e inocente nesse requebro com que se senta: os habitantes de Sétif orgulham-se dela.

Mas às notórias forças vivas do islamismo repugna toda a iconografia. Por isso, Aïn el-Fouara (Fonte Que Jorra), como se chama essa mulher de mármore, é atacada com regularidade e ferocidade: a martelo, a explosivos, a cinzel. Os islamistas apostam em apagar da face da terra todos os ídolos e, há um mês, a picareta de um fundamentalista destruiu-lhe o belo rosto, quebrou-lhe um ombro e torturou-lhe os seios. Uma orquestrada campanha nas redes sociais e mesquitas, quer despedaçar essa mulher – um estudioso islâmico propôs cobri-la (uma burka?) – mas os orgulhosos cabilas de Sétif teimam em defender a mulher cuja nudez se derrete em água fresca.

Menos feliz foi Ibtissame Lachgar. Todavia estava vestida. Betty vestia a sua t-shirt negra preferida. Psicóloga clínica, é activista e participa, em Marrocos, em manifestações. Sempre de t-shirt negra, com inscrição em fundo semelhante ao visual do terrorista Daesh, na qual se lê «Alá é lésbica». Betty escreve o mesmo nas suas publicações. Nunca se escondeu. Dá a cara por direitos iguais da mulher; defende em Marrocos a laicidade, o direito a não ter religião num país em que a apostasia é crime, a despenalização da homossexualidade. Betty organiza piqueniques no Ramadão – e por que não, será que algum de nós voltaria a interditar um bom bife à Sexta-Feira Santa?

Betty deu a cara, livre, mas os exércitos de purificação islâmica foram mais fortes: atrás das grades, Betty pode ser condenada por blasfémia. É altura dos nossos prestáveis activistas descerem a Avenida da Liberdade. Talvez de t-shirts negras com o slogan «Alá é lésbica».

Publicado no «CM», na minha coluna «A Vida Como Ela Não É»

São umas chaveninhas de chá

Há alguma ideias erradas sobre os homens. As ideias preconcebidas fundam-se em camadas e camadas de solo batido, crestado pelo sol, flagelado pelo mar. Tudo isso é substancial e imemorável.

Mas vejam, peço-vos, o escritor William Faulkner e o cineasta Howard Hawks. A amizade deles foi mais longa e bela do que a prometida pelas personagens dos actores Humphrey Bogart e Claude Rains no final do célebre «Casablanca». E reparem como já estamos a morar no cliché: quando os homens são amigos, são mesmo amigos, sem falhas tectónicas. Serão?

Quem, em Hollywood, descobriu Faulkner foi Hawks. É certo que os romances de Faulkner já eram celebrados. Já fora publicado «O Som e a Fúria» e crítica e leitores faziam-lhe a vénia. Foi então que Hawks leu «Soldier’s Pay». A quem o quis ouvir e mesmo a quem não quis, Hawks disse: «Acabei de descobrir o maior talento da nossa geração.»

Para terem ideia da raridade de um juízo destes, já depois de Faulkner estar em Hollywood, Hawks levou-o à pesca com o actor Clark Gable. Para Gable, Faulkner não passava de um guionista de serviço. «Mas, já agora – perguntou-lhe – quem são mesmo os melhores escritores?» Faulkner, que não primava pela modéstia, disse: «Hemingway, Willa Cather, Thomas Mann, John dos Passos e Faulkner.» «O senhor é escritor?» espantou-se o actor. «Sou sim, Gable, e o senhor o que faz?», reagiu Faulkner com aquele controlado módico de cinismo e despeito que evita ao ser masculino estar sempre a enfiar socos em trombas alheias.

Ora o que interessa é que Holywood ouviu Hawks e Faulkner foi convidado para escrever guiões. Por uma pipa de massa, um número que envergonha até o que se perdeu no remoto negócio do nosso BES. Faulkner era um grande escritor e os grandes homens não se vendem, não é? Faulkner quis deixar as coisas claras para a posteridade. Aceitou, sim senhor, por razões técnicas, já que «escre­ver por dinheiro – segundo ele – não é pro­pri­a­mente pros­ti­tuir o talento, mas encur­tar as fra­ses».

Hawks ensinou-lhe o bê-á-bá. Faulkner escrevia no estilo vanguardista que lhe reconhecemos, muita montagem, flash-backs, justaposição de tempos diferentes, em suma, um inferno para qualquer realizador. Hawks explicou-lhe o que tinha de fazer se queria levar a mala cheia de dinheiro: «A primeira coisa que quero é uma his­tó­ria. A seguir que­ro persona­gens. Depois salto sobre tudo o que tu pen­sas que tenha inte­resse.»

Hawks tinha outro escritor amigo, Ernest Hemingway. Os dois escritores, os dois amigos de Hawks, Faulkner e Hemingway admiravam-se. Que se saiba, nunca se encontraram e muito menos na companhia de Hawks. Tinham ciúmes dessa amizade. Eis o que queria dizer: estamos a falar de três machos, tipos rijos, estandartes da masculinidade. E, na verdade são umas menininhas ruborizadas pelo ciúme. Dois Nobel da literatura cuscavam Hawks para saber coisas do «rival». Elogiavam-se e picavam-se.

Hawks manipulava-os como se fossem duas virgens do seu serralho. «Daquele pedaço de lixo que é teu livro “To Have and Have Not” vou fazer um bom filme», disse um dia a Hemingway. «É impossível fazer um filme daquilo», reconheceu Ernest. «Eu consigo. Peço ao Faulk­ner para escrever. Seja como for, ele escreve melhor do que tu.»  Ao lado, Hemingway estremeceu: a muralha de touros, caçadas e guerras abalou por segundos.

E é isto um homem. Parecem grandes blocos de mármore. De uma inamovível dignidade. Por dentro uma convulsão de lisonja, ciúme, glass menagerie, chaveninhas de chá a transbordar de miminhos. E, no fim, saem livros intensos. E belos filmes, como «To Have and Have Not».

Publicado no Jornal de Negócios. No Weekend, sempre à sexta.