
A guerra não é o heroísmo, a guerra é a morte. E talvez exagere, talvez a guerra seja só a meia-morte. Estarão ainda vivas as personagens de Martin Sheen, no «Apocalypse Now», e de Robert De Niro, em «O Caçador», quando chegam ao fim desses filmes? Ou podemos declarar já o óbito das suas almas, mesmo se os corpos ainda mexem?
Quem partiria voluntário e com exaltação patriótica, se Portugal fosse hoje para a guerra? Que Laurindinhas viriam à janela cantar – «ver o meu amor, ai, ai, ai, que ele vai para a guerra»? Na mais incómoda e perturbante trilogia literária que conheço sobre a nossa Guerra Colonial, e em particular no seu «O Elogio da Dureza», o romancista Rui de Azevedo Teixeira arrasta-nos para o fundo vale de sombras da morte onde o mal nos enlaça pela cintura, para esse vale onde nascem monstros filhos da solidão moral e física do combatente e do inimigo. Pode a moral dos nossos dias, tão acolchoada no conforto e no trivial, suportar a superação do gigantesco medo dos quatro atrozes cavaleiros que são conquista, guerra, fome e morte?
O patriotismo talvez tenha morrido em 1942. Os japoneses acabavam de atacar Pearl Harbour. Hollywood em peso, uma Hollywood a nadar em luxo, futilidade, ademanes artísticos, vibrou de patriotismo. Jimmy Stewart, esse ser hitchcockiano, começou a comer que nem um doido para conseguir atingir o peso requerido pelo Exército, alistando-se a seguir. Chegaria a piloto de bombardeiro e ao posto de tenente-coronel. Tyrone Power, que tinha um casamento branco, não só deixou a mulher, como quem à janela lhe cantou a Laurindinha, foi o amante macho. Tyrone entrou para os marines, pilotando aviões de transporte de tropas no Pacífico Sul.
Ou seja, Hollywood fez mais do que produzir filmes patrióticos. Vejam, mesmo na Normandia, no desembarque aliado, um dos destroyers era comandado pelo actor Robert Montgomery. Ao todo, 12% do pessoal de Hollywood, produtores, realizadores, actores e técnicos, alistou-se nas forças armadas americanas. Henry Fonda, o pai da rebelde Jane de tão boas formas, voluntariou-se para artilheiro na Marinha. O oficial de serviço recusou-o: «Olha lá, sabes o que faz o caralho de um artilheiro nesta merda da Marinha? Morre. Matam-no. És demasiado esperto para seres um caralho de artilheiro!»
E as mulheres, as Laurindinhas de Hollywood? Financiavam a guerra: arranjavam dinheiro. Hedy Lamarr vendia beijos: um beijo a quem comprasse 25 mil dólares em títulos de guerra. Num só dia, Lamarr facturou 17 milhões. Dorothy Lamour foi a recordista: 30 milhões em 4 dias, fechando a sua campanha com 350 milhões. Com beijos e sem beijos, dizia ela.
Mas mesmo no sossego da retaguarda, a morte analfabeta espreita. O esplendor álacre de Carole Lombard casara-se com o epítome da virilidade que era Clark Gable. Carole foi vender títulos de guerra para Indianapolis. Carole adorava Gable: nem era pelo sexo, que já tinha tido melhor, confessava. Mesmo assim, antes de ir angariar beijos, deixara-lhe uma boneca loura insuflada na cama – «para não dizeres que ficas sozinho!» Mal acabou a missão, louca de saudades, em vez do comboio marcado, meteu-se num avião, num voo nocturno, num tempo em que, receando intromissão de aviões japoneses, se voava sem faróis de segurança. O avião embateu numa montanha e todos os ocupantes morreram. Carole tinha 33 anos.
À doçura, à euforia de que, como a rolha da garrafa de champanhe, explode o patriotismo, sucede sempre o cortejo negro do luto.
Quem, hoje, faria por nós a guerra? Teríamos de chamar os bárbaros? E onde estão os bárbaros?
Publicado no Jornal de Negócios, no Weekend das 6.ªs feiras
Penso nisso tanta vez. E suponho – queira Deus que erradamente – que esse patriotismo de guerra morreu de todo. Foi. Calculo que não habite o espírito dos portugueses, esses sim, demasiado acomodados na sua vidinha. Que será de nós, vivendo de empréstimos e com tão pouca vontade de luta?! Veremos. Talvez a guerra seja adiada. Ou não.
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