
Foi quase no último dia da Feira do Livro de Lisboa. Tantos livros e só pensava em mulheres nuas. Ia a descer o Parque Eduardo VII, caminhando em direcção ao brônzeo Marquês de leão à trela, e só pensava, ora vejam, em mulheres nuas. A culpa era do livro de poemas que levava na mão, esse «Bicho Carpinteiro», que as velhas musas ditaram a António Cabrita e que a Bárbara Assis Pacheco ilustrou com treze aguarelas: um escândalo em cores vivas, uma liberdade sexuada, um livro intumescente.
E foi o livro que me arrastou para a mais erótica memória que já me lambeu nessa casa de respeito que é qualquer museu. Aconteceu-me em Viena de Áustria, no Albertina Museum e a exposição era do pintor Egon Schiele.
Conto. Entrei em Egon Schiele, e entrou cada visitante, mesmo o mais pudibundo, pela mulher de saias levantadas. A saia da mulher que Schiele pinta pode ser verde ou vermelha, mesmo azul, mas a paisagem que revela tem sempre as quatro proibidíssimas letras dessa humana fenda que outro pintor disse ser a origem do mundo.
Essa feminina origem do mundo, essa palavra de quatro letras que é a mais impronunciável da nossa língua, abre-se e murcha, oferece-se e nega-se, incha ou seca, em centenas de telas de Schiele. Arrisco: durante um terço da sua vida os olhos de Schiele não fizeram outra coisa que não fosse estarem especados, ou melhor, avidamente enfiados numa juvenil, madura ou exangue e cansada vulva. (Com cinco letras a palavra já se pode dizer!)
Na pintura de Schiele a vulva surge nua, exposta, de um incandescente vermelho. É uma nudez interpretativa, mas impregnada pela tumefacta pulsão da vida: é possível que naquelas veias continue, um século depois, a correr sangue. Percebe-se que estes corpos, por vezes a roçar o grotesco, tenham provocado alguns amargos de boca e esgazeado os olhos dos austríacos que os viram no começo do século XX.
Schiele era o protegido de outro pintor, Gustav Klimt. E Schiele herdou-lhe não só o culto erótico da mulher nua, mas também a amante de 17 anos. Depois, casou com outra mulher, mulher que pintou como tinha pintado a amante pouco mais do que «menina e moça», e como já antes pintara as adolescentes que levaram os juízes a acusá-lo de sedução e abuso: todas levantando muito as saias e de olhos em desmesurada abertura, com excepção da mulher que leva a mão e o dedo para a geografia das quatro impronunciáveis letras, dedo tão mais tacteante quanto mais os olhos se lhe cerram.
Absolvido pelos tribunais, a Europa das artes sentenciou-o à genialidade de que as paredes do Albertina Museum são prova cabal.
E deixem-me falar de um dedo português. O dedo português está indelevelmente enfiado nesse Albertina Museum que acolhe a tão perturbante arte de Schiele. Emanuel Teles da Silva, descendente pela parte da mãe dos Condes de Tarouca, filho do Embaixador português, tornou-se cidadão austríaco e conselheiro de Carlos VI, tutelando com devoção a educação da infanta Maria Teresa, que depois seria imperatriz. Foi o dedo desse Conde de Tarouca que transformou as fortificações de um bastião militar no palácio de que fez sua habitação, o palácio Tarouca, que é hoje o Albertina Museum.
E continuo a caminhar, Parque Eduardo VII abaixo, o «Bicho Carpinteiro» de Cabrita e Bárbara na mão, rubros falos, negras vulvas lá dentro, a pensar que ao pobre Schiele os deuses só deram oito anos de trabalho, entre 1910 e 1918, ano em que a gripe espanhola o ranfou da vida. Em oito anos, de olhos postos para onde esta crónica não se cansa de apontar, Schiele ganhou as asas da imortalidade.
Publicado no Jornal de Negócios por altura da Feira do Livro