
Inaugurei, esta quinta, no CM, a minha nova crónica semanal. Leva por título genérico «A Vida Como
Ela Não É». Aqui fica a primeira.
Será preciso vir a morte esfregar-nos na cara o seu odor implacável para que se abra em nós, como pétalas de uma rosa matinal, a doçura da empatia e da humaníssima compaixão?
Na igreja de Gondomar estão duas urnas. Nelas, os corpos de Diogo e André são o que resta do que a irreparável morte roubou. Mas, na igreja, como nas ruas, nas televisões, mesmo no turbilhão dos grandes estádios, o que noutros dias são os fugidios e ásperos espectros velozes, desinteressados, egoístas a tratarem da sua vidinha – vendo, afinal, a vida como ela não é – transformaram-se agora em gentileza, compreensão, solidariedade e dádiva.
Do ponto de vista de Deus, como o genial Hitchcock gostava de filmar, vê-se a alta torre da igreja de Gondomar a picar as nuvens, à sua volta a tão ordenada planície de campas onde repousam gerações de mortos e o seu incompreensível sono. E é nesse torturado espelho da morte, na espantada e aflita dor da (in)despedida que, como uma inesperada erva, irrompe o melhor de nós. Será na morte que, por fim, vemos a vida à transparência?
Matamo-nos no Donbass, massacramo-nos em Gaza, temos bebés e velhos como reféns em túneis de barbárie, esquecemos o Sudão, e essa acelerada combustão dos dias, da vida como julgamos que ela é, parece-se a uma aranha insidiosa que nos entorpecesse o coração e as vísceras. Esse veneno de viúva-negra seca-nos a cabeça: mesmo no silêncio dos mortos do cemitério de Gondomar há mais ternura do que em nós.
E é quando a morte, repentina, morte púrpura, morte abrupta, de chofre, nos bate como um muro de granito, que voltamos, aí e só aí, a deixar-nos invadir pelo sonho, por um encantado idealismo, por um desaustinado amor que tanto funga e tanto se lava em lágrimas.
A Diogo Jota e a André Silva, aos dois irmãos que um tétrico relâmpago roubou, devemos a revelação do melhor de nós, dessa chuva de carinho, de abraços, de choro libertador. Diogo e André foram a enterrar. O que virá a seguir? A vida, sim. Mas a vida como é ou a vida como ela não é?