A espingardada de Hemingway

A vocação está na ponta de uma espingarda. Pelo menos para Ernest Hemingway. Mario Vargas Llosa cujo espírito paira agora por aí como uma erótica máquina lírica, descobriu que queria ser escritor – essa pulsão que se diz rasgar as entranhas –, ao ler «Madame Bovary», romance de um senhor francês, dado a crises nervosas, chamado Flaubert. O polaco Joseph Conrad alistou-se na então gloriosa Marinha britânica e aprendeu inglês, língua que foi sua musa inspiradora.

Mas que rumor é esse que faz os escritores estarem de bem connosco e de mal consigo? Poetas e romancistas serão inspirados por um demónio ou eleitos de Deus? E existirá essa chusma de musas, que imagino de maminhas veladas por tules a roçarem-se pelas meninges dos escritores? No caso das escritoras, serão faunos de infantis pilinhas divertidamente erectas e que quando dedilhadas fazem dó, ré, mi?

Não sei se querem vir ver Charles Dickens aos 12 anos? O inglês trabalhava já numa fábrica, num labor que alguns dirão ser uma antecâmara da literatura: colava etiquetas em pequenos vasos de graxa para botas.

Pois não, mas que relação terá com a literatura a indústria de cruzeiros nas Caraíbas? Era onde, em 1941, a saltar da vasta piscina para a sala de fumo de 1.ª classe do luxuoso paquete MS Kungsholm, trabalhava o futuro autor dessa indecifrável intriga que é o «Catcher in the Rye». J. D. Salinger era o director do entretenimento, ou seja, o escritor dentro do aquário: nadavam pelos salões centenas de peixinhos à sua volta e ele escrevia secretas «short-stories». Mostrou-as a Hemingway, quando se encontraram na Alemanha, os dois a fecharem as portas da guerra que Hitler abrira, já Salinger saboreara as praias da Normandia no apocalíptico desembarque de Junho. Hemingway adorou as histórias, o recluso Salinger adorou-lhe de volta a gentileza e a humildade de um Hemingway nos antípodas do mito público: o delicado espectáculo do amor entre dois homens é uma prosa forte que faz delirar a noite.

Mas como é que Salinger e Hemingway desenvolveram a aptidão para lidar com a embriagante máquina de fazer frases que é a escrita? Uma «predisposição de origem obscura» chamou-lhe já não sei quem – ou foi Llosa? –, talvez a mesma que arruína a vida do heroinómano, ou que dava inspiração própria e génio às pernas e aos pés de Pelé, Maradona ou Eusébio.

Talvez não seja nada de lancinante a ligar todos os escritores, talvez seja só a branca luz da leitura. Todos eles leram muito. Todos escreveram também muito. Aprende-se a escrever, lendo e escrevendo. Peço que ouçam o conde de Buffon, matemático, naturalista, filósofo e escritor: «Aqueles que escrevem como falam, mesmo que falem bem, escrevem mal.»

Hemingway aprendeu a escrever no liceu de Oak Park, no Illinois. Duas professoras fizeram-no ler Tennyson, Coleridge, Shakespeare, Dickens, Eliot, do melhor da língua inglesa. Ao mesmo tempo que jogava futebol, tocava violoncelo, fazia natação, Hemingway escrevia no jornal do liceu. O repórter que ele era foi um dia vencido pela imaginação. Precisava de preencher uma coluna sem assunto: inventou um Clube do Rifle dos Rapazes do liceu. Foi tão convincente que lhe pediram uma fotografia da rapaziada para o livro de honra do ano. Hemingway chamou cinco amigos, pediram espingardas emprestadas, e fizeram a foto. Nesse dia, a desabrida imaginação deu a volta à mansa realidade. Era um escritor.

Valerá a pena, perguntou T. S. Eliot, espatifar toda uma vida para, afinal, nada? E eu pergunto, mas quem é que espatifa para nada a vida, Camões ou um Elon Musk?

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend (sai à 6.ª)

2 thoughts on “A espingardada de Hemingway”

  1. Boa pergunta. E bem respondida. Era óptimo se conseguíssemos espatifar a vida como eles – fazíamos serviço público à séria e por tempo indeterminado.

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