
Há quem não resista à sedução do tamanho. Sid Grauman, alva cabeleira de Einstein, era um desses rendidos devotos da grandeza. Usava chapéus quase toldos, guiava uma faiscante banheira americana que jamais caberia numa viela de Alfama. E sobretudo, e assim já ficam a saber quem era Sid, mandava construir cinemas que eram autênticos Taj Mahal: o famoso Chinese Theater, o não menos famoso Egyptian Theater, atracções de Hollywood, nesse tempo em que o cinema não era uma mão-cheia de pipocas, mas sim, uma faustosa ceia gourmet.
Ora, Sid Grauman juntava ao seu lambido gosto pela grandeza, um imparável sentido do espectáculo e de elegância, a que gostava de somar um grão de picante. Convenhamos, o picante dele era igualzinho ao ardente jindungo do meu quintal de Luanda. E o jindungo na língua de Sid eram as elaboradas partidas – «pranks», chama-lhes a danada língua inglesa – que pregava fosse a quem fosse.
Veio visitar Hollywood, David Warfield, um digníssimo actor de teatro, nada dessa estuporada raça de actores de cinema, e Sid foi acompanhá-lo. Sid vestiu-se de mulher e vejam e ouçam: ainda nem os óvulos de que surgiria a geração #metoo sonhavam dançar em ameno útero, face à multidão que os esperava, Sid agitou as saias, e gritou, apontando para Warfield: «Estupro, estupro!»
Sid tinha a paixão das figuras de cera. Espalhou réplicas de actores pelo Chinese Theater. Um dia, convidou o patrão da MGM, Marcus Lowe, a falar, no seu Hotel Ambassador, a 75 donos de cinemas de toda a América, para lhes apresentar o plano das próximas grandes estreias dessa imensa produtora de cinema, que tinha mais estrelas sob contrato do que estrelas havia no céu. Lowe, entusiasmado, perorou uma hora, até descobrir que estava a falar para extraordinárias figuras de cera.
Ao mesmo hotel, aflitíssimo, pediu Sid que viesse Charlie Chaplin: descobrira uma mulher assassinada num dos quartos. Chaplin adorava Sid, meteu-se num carro e, em muito menos do que uma caixa de fósforos, lá estava a roçar o ombro amigo com Sid, que só queria evitar o escândalo. Chaplin olhou, sangue espalhado por todo o lado, e disse que tinham de chamar a polícia. Sid gritou, rejeitou, negou: nem pensar! E pede a Chaplin que olhe mais de perto o rosto da mulher sobre uma poça vermelhíssima: de ketchup e não de sangue.
Não sei como é possível, mas a verdade é que Sid não gostava de Ernst Lubitsch, esse cineasta alemão que pôs Greta Garbo a rir-se. Por portas travessas, quem sabe se não terá sido o nosso presidente Marcelo a descair-se, Sid soube que o seu Lubitsch de estimação marcara um bilhete de avião de Los Angeles para San Francisco, onde o esperava uma ante-estreia. Ora se havia coisa que Lubitsch odiava – pelo menos tanto como a minha mulher – era andar de avião. Não era só odiar, tinha um medo que se pelava. Já Sid está ao telefone a contratar dois duplos. Melhor, que isto em francês é que é uma língua de prata: Sid contratou dois «cascadeurs», aqueles tipos que fazem, nos filmes, as cenas mais arriscadas. E meteu-os no avião.
No ar, lá mais perto do céu, onde não há oficinas para aviões, as vísceras de Lubitsch a revolverem-se, os dois duplos levantam-se, desatam a correr pelo meio do avião, abrem a porta e lançam-se, de paraquedas, claro, deixando o alemão convulso e com um pequeno ataque cardíaco, que a tripulação teve de atender. Pouco depois, a seguir a jubiloso e orgástico vaivém, um ataque cardíaco pós-coital levou Lubitsch, aos 55 anos, para os braços de Nosso Senhor. Foi Sid, e esta partida de diabo a sete, que o matou?
Publicado no Weekend/Jornal de Negócios





