
O meu amigo Jorge Sá, em Luanda, comprou barato um carro que só virava à direita. E a quem sorria e pense desmentir-me, dizendo que isto são ficções que se me deslargam da cabeça desde que perdi o cabelo, deixo este aviso: eu não tenho um pingo de qualquer tipo de imaginação, o meu encéfalo é uma reles planície prosaica que só se excita com factos. O facto é que o Jorge guiava em Luanda um carro, sei se lá se um Toyota ou um Fiat, que se recusava a virar à esquerda.
A suspensão tinha levado um valente rombo e à tentativa de voltar à esquerda, a carroceria avançava para cima do pneu bloqueando o carro. Ora, isso era para o Jorge um minúsculo e inusitado contratempo. Sempre que era preciso virar à esquerda, ele conseguia-o virando duas vezes à direita.
Proficiente, com o silêncio meio zen com que enfrentava o mundo, o Jorge tinha na cabeça o mapa dessa Luanda que estava a um dedo mindinho de deixar de ser colonial e traçou um milhão de cenários que lhe permitiam circular no obstinado carro de direcção única.
Quem lhe terá aconselhado o insólito bólide? O exímio Nelinho Ramos com quem, de Citroen boca de sapo, de Luanda ao Bié, atravessei em 1976 o túnel de devastação que era a Guerra Civil angolana? Ou terá sido conselho do mais velho Ó Cê Marques, nosso mentor de alta estampa, o único mancebo que circulava em Luanda segurando o volante de um artilhado Seat com a vaidade de umas finas e sumptuárias luvas de pele de dedos cortados, que todas as duias (sim, as baronas, as damas) da cidade cobiçavam acariciar?
Talvez tenha sido eu a salvar o Jorge do suplício de Tântalo, que era virar à direita para a eternidade. Vejamos. O meu amor à estrada começou com o meu primeiro carro anti-nazi, um velho 2 CV. Esse «dois cavalos», descapotável, comprado a meias com o meu amigo Rui, estava tão aberto por cima como por baixo: íamos de Luanda ao Lobito, pelo Sumbe, e víamos o céu limpo sobre as nossas cabeças e, por um rombo no chão, o alcatrão. Chegámos a tentar travar pondo o pé na estrada? Não juro.
Disse anti-nazi e explico. O 2CV estava prontinho para ser dado ao mundo quando os nazis ocuparam a França. Os abençoados engenheiros da Citroen esconderam os planos e os protótipos já fabricados. O 2CV só pisou a estrada, depois da Guerra, e da libertação. O destino do meu dois cavalos foi o inverso: morreu queimado pelos carcamanos e pela Unita que lhe pegaram fogo, deixando-o estorricado ao lado da pastelaria Chá para Dois, no Lobito.
Volto ao Jorge: houve um dia em que um polícia o mandou parar e o quis obrigar a virar à esquerda. O próprio asfalto chorou perante o dilema. A perplexa autoridade, vendo a ordem lógica do seu mundo esvair-se, caiu de joelhos, fechou os olhos e disse ao Jorge: «Senhor faça-se em mim e nessa estrada, segundo a sua vontade! Vire para onde quiser.»
Eu regressara então a Luanda. Para comemorar a independência, comprámos a meias, por umas grades de cerveja e dois quilos de bifes do Lubango, um decadente mas ainda lustroso MG. Britânico, branquíssimo, capaz de virar à esquerda e à direita, num tempo cuja vertigem era ir ao fundo. Ontem, o Jorge veio de Luanda contar-me que, há uns anos, a chapa do chão do MG se rompeu. Tapou tudo com as fraldas de uma das bebés de que é pai. E assim andou mais uns tempos até ir à oficina para um arranjo na chaparia. O mecânico meteu o maçarico à coisa e as esquecidas fraldas arderam, quase consumindo essa obra de arte em que circulávamos independentes, sendo contemplados pelo povo da cidade com o epíteto: «Olha só, os últimos hippies de Luanda!»
Publicado no Weekend esse frágil mas sincero suplemento das sextas do Jornal de Negócios.