A culpa foi do apagão

Atrasei-me. A culpa foi do apagão? Talvez, mas aqui estão os meus livros de Maio, nesta newsletter que é só para quem gosta mesmo de livros.

Os meus livros de Maio
presos no engarrafamento

Atrasei-me. O semáforo apagou-se e os meus livros de Maio ficaram presos no engarrafamento. O que, estava Angola a um pezinho d’ água da independência, me faz lembrar do peculiar primeiro carro que o meu kamba Jorge comprou em Luanda. Tinha um ligeiro problema: só virava à direita. Fora abalroado por um camião e a suspensão partida fazia com que a carroceria, logo que se queria virar à esquerda, se encavalitasse no pneu, bloqueando o carro. 

E pergunto: o que bloqueou na educação em Portugal nas últimas décadas, que não vira nem à esquerda nem à direita? As escolhas curriculares? A formação de professores? O tentacular ministério da educação? A acção dos sindicatos? Quem nos responde é o escritor e professor António Carlos Cortez no seu ensaio O Fim da educação: crise, crítica, ensino, utopia, livro que inaugura uma nova colecção, diatribe, cuja vocação é tratar com rigor e severidade temas actuais. Na diatribe pensa-se e os autores correm riscos.

Volto ao meu amigo angolano. Como é que ele conseguia circular em Luanda sem ferir a lei, que é como quem diz, o bem comum? Tinha na cabeça um milhão de rotas alternativas e, num aperto, para virar à esquerda, virava duas vezes à direita, o que o colocava a 180º do ponto inicial, ou seja, à esquerda. Eis o desafio que o Prémio Nobel da Economia, o economista francês Jean Tirole, resolve à sua maneira em A Economia do Bem Comum, um livro que nos ensina a virar à esquerda e à direita, sem preconceitos, desfazendo o pensamento único.

E vejam, um polícia parou o meu amigo e quer que o obstinado carro vire à esquerda. O Jorge força e o espantado polícia vê, perplexo, um carro subir pelo próprio pneu acima (e abaixo!). A ordem lógica do mundo desaba e a autoridade demite-se: «O senhor faça o favor de virar para onde quiser!»

Se a própria autoridade pode ser iconoclasta, o que dizer da poesia? Bicho Carpinteiro é o livro que o António Cabrita faz o favor de publicar comigo. Ferve nele um nu desejo descabelado, que por vezes se protege vestindo a roupinha de um sapiente humor antigo, ou não fosse o livro, como se diz em subtítulo «as aventuras e desventuras de um corpo que, farto de virar o ananás, contra o seu ânimo já enferrujado tenciona dar o falo à IA». Espantoso é como Bárbara Assis Pacheco tão bem ilustra este livro – ofende? Ó se ofende. 

E faço um parêntesis para falar de dor e luto. Filho de Uma Mãe: a solidão e a perda no século XXI, de Adalberto Faria, é um livro confessional sobre o vazio que é a partida de uma mãe. É íntimo, sim. Comovente. E são dois livros num: na segunda parte, Adalberto acolhe 29 depoimentos, de D. Januário Torgal a Bernardino Soares ou António Barreto, passando por Bárbara Reis ou Beatriz Pacheco Pereira.

E sem saber se estou a virar à esquerda ou à direita, falo-vos de outro livro de sabor circense e mágico. Com a parceria do Fundo Cultural da SPA, escreveu-o Cristina Carvalho, que lhe chamou Fabulário ou o Pequeno Circo do Mundo, e ilustrou-o o arquitecto e pintor José Manuel Castanheira. Os autores fazem dele um livro em que o leitor adulto se sente autorizado a voltar a saborear a inocência.

Foi com essa mesma inocência que salvei o meu amigo Jorge. Desafiei-o a comprarmos a meias, em Luanda e já na dipanda, um descapotável, um very british MG. Finalmente, tínhamos um carro que curvava à esquerda e à direita. Cabelos ao vento, passávamos no asfalto e no musseque e os candengues gritavam: «Olha só, os últimos hippies de Luanda!» Os leitores experimentarão essa inocência, descobrindo «os últimos hippies de Lisboa» – ou do Porto – ao lerem O Verão Quente de 1975: Tudo Era Permitido, em que o jornalista e nosso autor Pedro Prostes da Fonseca visita as coisas extravagantes, raras, bizarras, insólitas e excêntricas do PREC, nesse ano em que tudo podia acontecer – e, leiam, aconteceu. 

Outra experiência de inocência é a que Greg Lukianoff e Jonathan Haidt nos propõem em A Infantilização da Mente Moderna. É um de Os Livros Não se Rendem, com a parceria da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações. Um livro que arrasa a ideia de «segurança», «protecção» ou «ofensa» na linguagem e nas ideias nas universidades.

Sem querer ofender ninguém, o que não disse foi como se comprou o MG. Se bem me lembro, foi pago a grades de cerveja e a muitos quilos de carne que uns mais velhos nos arranjaram no Lubango. Coisas como esta não se caçam na IA, mas na IA muitas coisas se podem aprender. Jorge Rio Cardoso oferece a pais, professores e alunos um livro novinho em folha: Mais IA, Melhor Educação: Um guia essencial para pais, alunos e professores. É o que de mais actualizado se pode encontrar, prático e seguro.

E acabo com o que o meu amigo Jorge me contou ontem: lá em Angola, a chaparia do chão do MG abriu buracos. Para a chuva não entrar, atapetou tudo com as fraldas de uma das suas bebés. E assim andou anos. Há dias, foi à oficina fazer um arranjo e o mecânico aplicou-lhe o maçarico. O esquecido fundo de fraldas ardeu como um vulcão e consumiu nas labaredas do inferno esse brinco da minha juventude revolucionária.

Virem à esquerda ou à direita, mas nunca por nunca usem livros para atapetar a fendida e frágil chaparia dos vossos carros. E muito menos estes meus livros de Maio saídos do apagão e do engarrafamento.

Não vos deixo sem uma palavra de auto-ajuda. Na nossa chancela Crisântemo, estreia-se Mafalda Johannsen. Escreveu Vendas Para Quem acha que Não Tem Talento. A Mafalda é especialista em prospecção B2B, o que explica, certamente, o seu notável sentido de humor. O livro tem o talento de nos ensinar que estas coisas se aprendem. Com seriedade e um profissionalismo metódico. As vendas da Guerra & Paz vão aumentar e palpita-me que a Mafalda vai escrever mais livros.

Estreia também, na tão feminina chancela Euforia, é a da romancista Alexandra Cruz. Rivais Prometidos é o título de um livro erótico, que junta inimigos à primeira vista, daqueles que jamais alguém sonha sequer aproximar. Mas juntam-nos. Se há revolta e motins? Há. Há ódios e cheiro de vingança. Uma insidiosa sensualidade, também… o resto, como alguém disse, é literatura.

Manuel S. Fonseca, editor

2 thoughts on “A culpa foi do apagão”

  1. Bem, vou ter de dividir isto para contornar a tua guarda pretoriana que protege os teus olhos do mundo:

    Afinal, não vais apegar-te à velhice com ambas as mãos. Fiquei com a ideia de que ias descer o rio como um orgulhoso barco. Por tal, estava a alinhar uma defesa dessa opção de princípio (ou fim), que pudesse ser dita nas aulas de Carmo Ferreira. Claro, esbarrei com a falta de literatura científica que trate os velhos por aquilo que eles são: trapos. Os cientistas têm medo da velharia e derretem-se em loas em vez de leis. Por um lado, os velhos têm poder democrático: o voto, que pode alterar políticas e despedi-los. Por outro, são todos ricos que lhes permite comprar ciência favorável. De qualquer maneira vou acabar, falta-me ainda uma revisão do Kant para encorpar este panegírico do caturra de jardim e telejornais.

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  2. Ora aqui está, Maturino, uma vantagem minha: nunca ter tido aulas com o Carmo Ferreira. E, bem vistas as coisas, as opções de fim (as nossas) não são muito diferentes, ou pelo menos nem mais nem menos angustiantes, do que foram as nossas opções de princípio. No principio era o Verbo: no fim, também.

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