
«Essa cabra!» Foi o que, levantando-se de um salto do seu leito de morte, exclamou Walt Disney, quando alguém no hospital mencionou, inadvertido, o nome de Maureen O’Hara.
Ruivíssima, tão ruiva como a minha amiga Helena, Maureen era uma irlandesa incandescente, nascida no bairro de Ranelagh, em Dublin, a 17 de Agosto de 1921. À sua beleza incendiária, Maureen juntava um carácter nobre e inabalável. Disney tinha-a contratado para ser a vedeta de um dos seus filmes e quis quebrar o acordo. Em tribunal, Maureen fê-lo mastigar e engolir cada folha do raio do contrato (desta vez, juro que estou a falar em sentido figurado). E explicou: «Prefiro que o Walt me chame cabra em vez de cobarde, como ele foi.»
Nessa altura, já Maureen era uma veterana batida, mas as suas batalhas nos tribunais americanos começaram cedo e chamo à colação duas, que bem poderiam ter sido contadas a Donald Trump quando infante e a sua educação era uma possibilidade.
Maureen precisou, para trabalhar em Hollywood, de se naturalizar americana. Teria vinte e poucos anos. O juiz mandou-a ler um textinho em que declarava «renunciar à sua lealdade à Grã-Bretanha». Maureen recusou. Exigiu renunciar, sim, à sua lealdade à Irlanda. Ora, os tribunais americanos só reconheciam os irlandeses como ingleses. Ela explicou: «Não tire, Excelência, aos meus filhos o orgulho em terem tido uma mãe irlandesa.» Não vergou e foi a primeira vez que um tribunal americano teve de reconhecer um irlandês como irlandês.
A segunda vez em que um tribunal se lhe rendeu, foi no caso com a revista tablóide Confidential Report. Vinha na primeira página que ela fora apanhada, num cinema, o Chinese Theatre, em Hollywood, a fazer acrobático sexo numa das filas do fundo. E, toque xenófobo; com um latino. Num julgamento célere, em seis semanas, Maureen arrasou o tablóide e provou que à data estava a filmar em Madrid.
A glória artística de Maureen O’Hara passou pelo olhar de John Ford, esse Homero da narrativa cinematográfica, e pelos braços de John Wayne. Durante 20 anos trabalharam juntos e há pelo menos duas obras-primas, «The Quiet Man» e «The Wings of Eagles», que fazem deles uma Santíssima Trindade a merecer vida eterna.
John Wayne não hesitou mesmo em dizer: «Como amigos, a companhia que prefiro é a de homens. Mas há uma excepção: Maureen O’Hara.» Ora, era exactamente com John Wayne, em 1952, estava eu a um ano de nascer, que Maureen se preparava para uma das mais belas cenas que os meus pobres olhos já viram, a do beijo roubado e que se deixa roubar, numa noite de tempestade como só na Irlanda. Ford, era o realizador, e meteu naquilo todo o vento, trovões e relâmpagos que tinha à mão. A cena exigia um impossível controle físico dos actores, o vento a bater-lhes no rosto, nos cabelos. Ford, irritado, gritou para Maureen: «Aguenta-me esses malditos olhos abertos!» Maureen, e foi por isso que lhe louvei o carácter inabalável, respondeu-lhe à letra: «O que é que um careca como tu sabe de cabelos a espetarem-se-lhe nos olhos, meu grande cabrão!»
O pessoal no plateau gelou. Nunca ninguém se dirigira ao Grande Criador de forma tão lírica. Ford, que amava Maureen, desatou-se a rir. Num dos dias seguintes vingou-se. Wayne devia arrastar Maureen pelas ruas da vila para, casamento falhado, a devolver à família. Ford mandou atapetar o chão com a caca de um rebanho de ovelhas. No fim da cena, Maureen fedia que até em Lisboa cheirava. Ford repetiu a cena durante todo o santo dia, não a deixando tomar banho. Disse ela: «O que podia eu fazer, senão rir-me também?»
Publicado no Weekend, suplemento do Jornal de Negócios
Muito bom, como sempre. Comecei o dia a ler o seu texto e não podia ter começado melhor Um abraço amigo.
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Maureen O’Hara era uma actriz e tanto. Vi-a pela primeira vez num livrinho da antiga colecção cinema, pertença de minha tia. Ali se contava um filme, salvo erro “O vale era verde”; e mostrava algumas imagens. Era linda. Desconhecia que fosse também mulher de carácter. Ainda bem.
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Inigualável. Não perco.
Muito obrigada.
Carminda Canha
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