
Há na minha cabeça um alvoroço de garfos e relâmpagos e a culpa é do meu amigo Paulo Nogueira, o mais português dos brasileiros, cuja prosa, qual irreverente magnólia, floriu no extinto O Independente, perfumando a crítica de filmes e livros. O Paulo é, agora, meu autor. Trocamos emails e comovidas mensagens, de cá para lá e de lá para cá desse irredutível oceano Atlântico, que eu quero propor a Trump que se passe a chamar Golfo de Portugal e a que o Paulo insiste em chamar Golfo do Brasil.
Ora o Paulo, na sua última mensagem, desencantou do galinheiro marxista um nome gélido, o do insubtil Enver Hoxha. Não é nome que fervilhe hoje em nenhuma memória. Relembro: foi presidente da Albânia 40 anos, da sua acção resultando a triunfal sociedade comunista que erigiu 750 mil bunkers em 28 mil km2 e atingiu um lugar no pódio na competição entre as nações de todo o mundo, como a terceira mais pobre, com um rendimento mensal por habitante que andaria pelos 10 euros (por mês, por mês, que o povo aguenta!). A paixão pela educação era outro nobre desígnio do tio Enver: depois de ter empalado o clero e as migalhas de aristocracia sobrantes, na louvável tradição estalinista expurgou os seus camaradas, em particular os intelectuais, não querendo no partido ninguém que tivesse mais do que uma boa 4.ª classe.
Tudo isso são minudências susceptíveis das mais equilibristas interpretações, como nos dirá o relativista amoral em que se converte qualquer comunista, quando entalado pelos factos. Para provar que nenhum viés ideológico me enxameia ou impele lembro já o que Jacques Chirac disse, em 1988, na Comissão Europeia, depois de Margaret Tatcher azucrinar a cabeça de toda a gente para ser reembolsada de uns sumarentos milhões de libras. Cuidando que o microfone estava mudo e surdo, mon ami Jacques gera o terror na sala com esta frase cristalina e educativa: «Mas o que quer esta megera? Os meus couilles numa bandeja?» E couilles é mesmo o que redondamente estão a pensar.
Já esse émulo de Mário Soares chamado Mitterrand, que um dia disse «O que seria da francofonia se ninguém falasse francês», foi operado à próstata, com a nação gaulesa de olhos postos na delicadeza do órgão. Volta ao Eliseu e pergunta-lhe uma jornalista se achava que depois de tão fulcral cirurgia se sentia autorizado a permanecer no poder. Miterrand não podia ter sido mais claro: «Não creio que me tenham tirado um lobo cerebral, já que não foi bem desse lado que fui operado!»
Não ficaria em paz com a minha consciência se não trouxesse a este incêndio as labaredas de Silvio Berlusconi. Em 2009, em Abbruzo, um voraz tremor de terra mastigou e engoliu as casas. Silvio veio oferecer conforto à população que dormia a céu aberto ou numas espasmódicas tendas. Disse-lhes Sílvio: «Tentem ver o outro lado e pensem que estão num fim de semana a fazer campismo.»
A irreverência de Sílvio nunca dormia. Era dono de um clube, o AC Monza. Antes de um jogo contra um grande de Itália, a Roma ou a Juve, sei lá, galvanizou os jogadores: «Vocês ganham a estes gajos e no fim do jogo têm um autocarro de putas a encher o balneário.”
E volto, querido Paulo, a ti. A ti e à ovovivípara citação do inominável Enver Hoxha, que me lembraste. Foi na mensagem de Ano Novo de 1967 e disse ele aos albaneses: «Povo albanês, tenho duas notícias a dar-vos, uma má, outra boa. A má é que o ano que agora começa vai ser mais duro do que o ano passado. A boa, é que este ano será bem mais fácil do que o próximo.»
Ou não fosse o comunismo uma doutrina sempre em progresso.
Publicado no Weekend, no Jornal de Negócios
“Quem vê caras…” um homem que parece tão normal à vista desarmada e afinal era um tirano do pior. Pobre de quem viveu durante o seu mandato e não riscava no Partido. Vão sofrimento que ao povo cabe sempre.
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Obrigado pelo comentário. E já se sabe: quem vê caras…
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Isto parece um pouco ahistórico, fantasista até; depois da história feita, bombardeia-se com os factos: “Não há factos, apenas interpretações”, disse o homem ao meio-dia, quando a sombra é mais curta. Já vi essa frase da notícia boa e má em algum lado, mas não era do Hoxha; é uma anedota que se conta.
Fidel Castro: “Camaradas! Esta noite tenho uma boa e uma má notícia. Vou dar primeiro a má notícia: Não temos muita comida e vamos ter que começar a comer lixo. A boa notícia é: Não há muito dele!”
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Hello Maturino.
A frase é mesmo dele. Vai lá fazer as tuas pesquisas. Anedota é a do Fidel. E há mais factos do que parece…
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Pesquisei, pesquisei e pesquisei, mas a Internet só apresenta a tua citação como bona fide e única. Eu devo ter guardada em qualquer lado esta frase, se fosse mais novo, se tivesse mais tempo de vida, ia procurar; é uma frase que até vem da literatura – mas, não sendo intelectual, não posso dar a referência.
O Hexha tentou viver longe dos revisionistas soviéticos, mas quando os chineses os largaram para ficarem amigos dos americanos, a coisa estrepou. Receberam o “anticomunista delirante” do Nixon e soltaram o Hexha aos bichos.
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