A escada para o céu

Claro que já dormi, como os Led Zeppelin, no mesmo hotel de Nova Iorque, o Plaza, mesmo em cima do Central Park. Estive lá com o Emídio Rangel, a expensas de Francisco Pinto Balsemão, the best of the bosses. Não tive foi a sorte de coincidir com os Led Zep. Mas contaram-me que a um canto escuro, ali perto da magnífica sala de chá, o guitarrista Jimmy Page e um David Bowie a cair da tripeça, e de visita, se sentaram siderados a ver num televisor, em loop, um filme curto do inglês Kenneth Anger, uma dúzia de brancas e reluzentes linhas na mesinha de vidro em frente, o chá de pituitária da preferência dos dois.

Ah, o filmezinho que estavam a ver era o «Lucifer Rising», um ritual satânico, com música composta por Bobby Beausoleil, condenado a prisão perpétua, por homicídio ordenado por Charles Manson.

Na Luanda colonial, era tudo diferente. Dois amigos meus de um movimento católico progressista organizaram um festival rock no cinema Avis. A grande vedeta foi o Grupo 5, onde brilhavam o cantor Very Nice e o guitarrista Filipe Mendes (que se haveria de chamar Phil Mendrix). Se não foi em 71, foi em 72, e o Grupo 5, ouvidos os cristianíssmos anseios dos organizadores, aceitou um cachet manso e humilde. Mas vingaram-se: foram-se ao Mini Morris amarelo de um dos meus amigos e escreveram a tinta preta e em desajeitadas letras de quarta classe: «Jesus ama-te». Nas duas laterais do Mini, que assim circulou meses na cidade.

Espécie de apresentador, eu subi ao palco, com uma mensagem contra cultural enfeitada de teologia da libertação. Só consegui fazer duas aparições. Os uivos, as cuspidelas, as piadas de fazer corar a Cicciolina mataram no ovo o que era para ser uma carreira que ofuscaria o Billy Cristal dos Oscars.

E agora que já fui a Luanda, volto à velha e boa América e vejamos. Já dormi no Plaza, sim, mas nunca dormi num hotel – e é que nem sequer consegui ainda descobrir que hotel fosse – onde fizessem o que fizeram ao Jimmy Page, o líder dos Led Zeppelin.

 Entrem comigo no quarto. Vemos que Jimmy está muito mais nu do que quando a mãe o pôs neste mundo. Deitaram-no em cima de um carrinho capaz de trazer ao quarto um jantar gourmet, champanhe, caviar, um refinadíssimo tártaro, um soufflé à l’orange en coque. E vejam, vejam, agora estão a cobrir-lhe a nudez de chantilly – quem nesta santa vida não quereria ter a sua nudez refrescada, adoçada e emulsionada pelo alvo creme que é o chantilly? Já o levam, corpo todo chantilizado, pelo corredor e entram numa suite. Peço desculpa por não vos abrir a porta. Está lá um bando de «groupies»: elas querem lamber Jimmy da cabeça aos pés.

Lamberam, não lamberam? Sei que isto só pode ser um hotel da América profunda. Nem Nova Iorque, nem L.A. se dispõem a tanto. Mas o que quero protestar aqui é a minha mais que terna e exaltada devoção pelos Led Zep. Nunca os lamberia, mas dancei, grunhi e gritei com Whole Lotta Love, Rock and Roll, Black Dog, fiquei preso por finos arames aos dedos de Deus com a única balada deles, o Stairway to Heaven, que fizeram de propósito para encantar George Harrison.

Os Led Zeppelin tinham, como todos os tipos brancos que vêm da pobreza, um deslumbramento com a hipérbole: fizeram explodir os decibéis do rock ´n rol, inventando o hard-rock («cantam notas que só os cães aguentam ouvir», queixavam-se os críticos), e elevaram a decadência do estilo de vida das bandas rock à destruição de quartos, pistolas prontas a disparar num avião ou à orgia em que o moby-dickiano baterista John Bohman morreu com uma overdose de vodka. Compraram a escada para o céu.

Publicado há umas semanas no Weekend, do Jornal de Negócios

O insubtil tio Enver

Há na minha cabeça um alvoroço de garfos e relâmpagos e a culpa é do meu amigo Paulo Nogueira, o mais português dos brasileiros, cuja prosa, qual irreverente magnólia, floriu no extinto O Independente, perfumando a crítica de filmes e livros. O Paulo é, agora, meu autor. Trocamos emails e comovidas mensagens, de cá para lá e de lá para cá desse irredutível oceano Atlântico, que eu quero propor a Trump que se passe a chamar Golfo de Portugal e a que o Paulo insiste em chamar Golfo do Brasil.

Ora o Paulo, na sua última mensagem, desencantou do galinheiro marxista um nome gélido, o do insubtil Enver Hoxha. Não é nome que fervilhe hoje em nenhuma memória. Relembro: foi presidente da Albânia 40 anos, da sua acção resultando a triunfal sociedade comunista que erigiu 750 mil bunkers em 28 mil km2 e atingiu um lugar no pódio na competição entre as nações de todo o mundo, como a terceira mais pobre, com um rendimento mensal por habitante que andaria pelos 10 euros (por mês, por mês, que o povo aguenta!). A paixão pela educação era outro nobre desígnio do tio Enver: depois de ter empalado o clero e as migalhas de aristocracia sobrantes, na louvável tradição estalinista expurgou os seus camaradas, em particular os intelectuais, não querendo no partido ninguém que tivesse mais do que uma boa 4.ª classe.

Tudo isso são minudências susceptíveis das mais equilibristas interpretações, como nos dirá o relativista amoral em que se converte qualquer comunista, quando entalado pelos factos. Para provar que nenhum viés ideológico me enxameia ou impele lembro já o que Jacques Chirac disse, em 1988, na Comissão Europeia, depois de Margaret Tatcher azucrinar a cabeça de toda a gente para ser reembolsada de uns sumarentos milhões de libras. Cuidando que o microfone estava mudo e surdo, mon ami Jacques gera o terror na sala com esta frase cristalina e educativa: «Mas o que quer esta megera? Os meus couilles numa bandeja?» E couilles é mesmo o que redondamente estão a pensar.

Já esse émulo de Mário Soares chamado Mitterrand, que um dia disse «O que seria da francofonia se ninguém falasse francês», foi operado à próstata, com a nação gaulesa de olhos postos na delicadeza do órgão. Volta ao Eliseu e pergunta-lhe uma jornalista se achava que depois de tão fulcral cirurgia se sentia autorizado a permanecer no poder. Miterrand não podia ter sido mais claro: «Não creio que me tenham tirado um lobo cerebral, já que não foi bem desse lado que fui operado!»

Não ficaria em paz com a minha consciência se não trouxesse a este incêndio as labaredas de Silvio Berlusconi. Em 2009, em Abbruzo, um voraz tremor de terra mastigou e engoliu as casas. Silvio veio oferecer conforto à população que dormia a céu aberto ou numas espasmódicas tendas. Disse-lhes Sílvio: «Tentem ver o outro lado e pensem que estão num fim de semana a fazer campismo.»

A irreverência de Sílvio nunca dormia. Era dono de um clube, o AC Monza. Antes de um jogo contra um grande de Itália, a Roma ou a Juve, sei lá, galvanizou os jogadores: «Vocês ganham a estes gajos e no fim do jogo têm um autocarro de putas a encher o balneário.

E volto, querido Paulo, a ti. A ti e à ovovivípara citação do inominável Enver Hoxha, que me lembraste. Foi na mensagem de Ano Novo de 1967 e disse ele aos albaneses: «Povo albanês, tenho duas notícias a dar-vos, uma má, outra boa. A má é que o ano que agora começa vai ser mais duro do que o ano passado. A boa, é que este ano será bem mais fácil do que o próximo.»

Ou não fosse o comunismo uma doutrina sempre em progresso.

Publicado no Weekend, no Jornal de Negócios

Gene Hackman tinha amigos

Agora sei por que não lhe disse «Good morning, Gene». Adivinhei-lhe o tumulto atrás da alheada placidez. Se o tenho interrompido, talvez me tivesse agarrado em peso, mergulhado e afogado na piscina do Sunset Marquis Hotel.

Eu tinha ido a Los Angeles e vim tomar o pequeno-almoço tardio à piscina do hotel. Uma solidão solar, se não houvesse a uma mesa um corpanzil desajeitado, um tipo com uma cara de um metro. Estava ali Gene Hackman. No dia seguinte, voltei à mesma hora. Gene tomava, com aquele vagar que se torna aflitivo em tipos gigantescos, o mesmo pequeno-almoço, emboscado atrás de um jornal.

Tomei, portanto, dois pequenos-almoços com Hackman: só depois soube que ele fora, aos 20 anos, amigo do peito de Dustin Hoffman. Palmilhavam Nova Iorque e lá pelas duas da manhã, Gene largava-o e dizia-lhe: «Tenho mesmo de ir. Preciso.» E ia sozinho a algum tugúrio aberto, provocava quem lá estivesse, só para andar à porrada e desanuviar. Era outro, aliviado, quando voltava.

Precipitei-me. Falei de dois amigos e eram três. O terceiro era Robert Duvall. Dustin e Gene já se conheciam da Califórnia, da escola de teatro que chumbou Gene e o fez zarpar para Nova Iorque. Apaixonou-se, casou-se e aos 28 anos bate-lhe à porta Dustin, com 21. Durante 15 dias pô-lo a dormir no chão da cozinha. Mas era uma violência para a intimidade do casal ter um tipo como Dustin naqueles 30 metros quadrados. Gene agarrou nele e emteu-o em casa de Duvall, que se tornou seu mentor.

Divertiam-se a fingir que eram os Rangers, a mais potente unidade para todos os serviços. Dustin fazia de três Rangers que tinham corrido 10 milhas nus pelo gelo. Robert era o chefe e perguntava-lhe o que sentia: «Nada, chefe, sou um Ranger e um Ranger nada sente.» Robert dava um soco ao segundo Ranger: «Sentiste, soldado?» «Nada, chefe, sou um Ranger!» O terceiro Ranger nu, apresentava-se com uma enorme erecção. Robert, com o sabre, cortava-lhe o pénis erecto. «Sentiste, soldado?» «Nada, esse era o pénis do homem que está atrás de mim!»

Trabalhavam no que lhes aparecesse, em restaurantes, obras, páginas amarelas. Gene fazia mudanças e levava um frigorífico às costas a um 5.ª andar. Chamou Dustin para carregarem caixotes de livros, escadas acima. Ao fim de uma hora, Dustin caiu no chão exausto, num antes a morte que tal sorte. Com Robert, Gene fez uma entrega num prédio de luxo, sujaram a entrada e foram ao camião buscar uma vassoura. Varrido o acidente, mandam a vassoura para as traseiras do camião. A vassoura voa com um dardo e rasga ao meio uma valiosa litografia de Picasso. O dono teve um ataque e, conta Gene, borrou-se nas calças.

Chamem-lhes o que quiserem, mas estes três tipos eram puríssimos e só pensavam no teatro. E em mulheres. Dustin era vendedor no Macy’s e apaixonou-se por uma colega. Pediu ajuda a Gene, que veio vestido de mendigo, a fingir-se meio bêbado, começando a importunar a jovem. Logo Dustin o empurrou, com um «Sai daqui vadio». Gene volta e Dustin bate-lhe, entram pela casa de banho, lá dentro fingem que espatifam tudo, Gene encharca-se no lavatório, saem, Dustin pontapeia-o nas costas e Gene deixa-se cair pelas escadas. A moça horrorizada, foge de Dustin com um «És um bruto, não te quero ver mais».

No mesmo Macy’s, no Natal, Gene trouxe o filho de 18 meses. Dustin sentou-o no balcão e começou a vendê-lo: «Um boneco que anda e fala, só 17 dólares!» Uma mulher gritou: «É para mim! Quero.» Quando o agarrou, ao sentir que era um humano, fugiu espavorida e aos gritos.

Admiram-se que, juntos, tenham tido 19 nomeações e 5 Oscars?

crónica escrita para o Weekend, no Jornal de Negócios, ao saber do passamento de um dos grandes actores de sempre de Hollywood