O melhor amigo

Bem sei que a exaltante ideia do «melhor amigo» ganhou um nefando mau nome nos últimos Invernos do nosso descontentamento. Notas de euros a marcar livros e obras em apartamentos em Paris puseram o «melhor amigo» sob suspeita. Autorize-me o leitor, porém, um esforço metafísico para resgatar das trevas cavernosas a angélica figura do amigo. Venham comigo a uma praia do Hawaii.

Ali, na fímbria do mar, estão os cineastas Steven Spielberg e George Lucas. Acreditem ou não, estão de calções, peito ao léu, a rebolarem-se na areia enquanto constroem castelos efémeros. Juntíssimos como só os melhores amigos conseguem estar juntos. Um ano antes, Lucas tinha vindo visitar Spielberg ao Alabama, a um monumental plateau montado nuns abandonados hangares da Força Aérea americana. Filmava-se «Encontros Imediatos do Terceiro Grau». Lucas acabara a rodagem do seu primeiro «Star Wars» e estava tão pessimista e angustiado como André Ventura ao saber dessa coisinha virtuosa e edificante que foi e é «a cena das malas, meu!»

Ao ver a grandeza do cenário onde Spielberg filmava, deu-lhe um abraço e jurou: «Tal como já fizeste com o «Tubarão», este «Encontros Imediatos» vai arrasar. Eu é que estou desgraçado. Ninguém vai ver o meu «Star Wars»!»

Spielberg foi buscá-lo ao chão onde já Lucas jazia, desumilhou-o, e lançou-lhe um desafio: «Bora lá, a uma aposta: das receitas destes nossos filmes, cada um dá ao outro 2,5% do que ganharmos.» Lucas agradeceu, sentiu-se até melhor.

«Encontros Imediatos» teve um êxito notável, com uma receita bruta de 300 milhões de dólares, mas «Star Wars» estreou-se com cifrões galácticos: milhões de espectadores, a receita já nos «billions», logo ali mil e seiscentos milhões de dólares. Os dois amigos fizeram o «acerto de contas» e George passou a Steven um ridículo cheque de 40 milhões de dólares. Ainda hoje, de vez em quando, em Dia de Acção de Graças, Spielberg vê cair no seu modesto mbway mais um milhão e qualquer coisa, resultado do estrondoso falhanço que Lucas augurava a «Star Wars». Eis o que, diria eu, fortalece uma amizade.

E o que queria dizer é que há mesmo entre os cineastas daquela geração, os chamados «movie brats», Steven, George, Scorsese, De Palma e Coppola, uma comunhão acima do sulfuroso ciúme. Todos ajudaram Lucas: Spielberg apresentou-o a John Williams, que compôs a prodigiosa música do filme; Brian De Palma inspirou o texto de abertura de «Star Wars», a cruzar como uma nave o ecrã, de baixo para cima, e encurtou o texto inicial para três parágrafos. E há mais dádivas entre eles: Spielberg filmou, para o «Scarface» de De Palma, a cena de tiroteio com Al Pacino de pulposa metralhadora na mão, no cimo de uma escadaria; Scorsese trocou com Spielberg «A Lista de Schindler» pelo «Cabo do Medo».

E quando cada um deles estreava um filme que passava a ser o filme mais visto de sempre, «Star Wars» para Lucas, o «E.T.» para Spielberg, compravam uma página inteira de publicidade da revista «Variety», com elogios ao amigo de fazer corar uma menina de 15 aninhos.  

Voltemos à praia, ao Hawaii. Steven acabara de se espalhar com o «flop» que foi «1941». Enquanto constroem castelos de areia, George diz a Steven que tem uma ideia para uma trilogia: um arqueólogo aventureiro que se chama Indiana Smith. Mas tem de ser Steven a dirigir os três filmes. Spielberg torce o nariz: «Só se os guiões já estiverem escritos.» Lucas mente: «Estão escritos os três!» Spielberg aceita, mas com uma condição: «O arqueólogo tem de se chamar Indiana Jones.» Castelos de areia numa praia do Hawaii.

Publicado no Weekend / Jornal de Negócios

2 thoughts on “O melhor amigo”

  1. Que histórias mais bonitas, Manuel. Eu diria que a nossa geração (e limítrofes) acreditava/acredita no poder formidável da amizade por si mesma, sem penduricalhos ou excrescências. É verdade que cada ser humano tem exemplos pessoais de tal sentimento. Não serão exemplos tão desmedidos como os que apresentou, a dimensão coaduna com o altruísmo do sentimento vivido por cada um. É um “Pedi e recebereis” laico, ainda que, em amizade, pedir seja esforço, um sinal de menoridade. Amizade é antecipar; dar naturalmente, sem que seja pedido. Bom dia

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