Calças púrpura, balalaica branca

Aqui de calças brancas, mas foi pouco depois desta magnífica celebração em Luanda

Eram para aí umas sete da tarde, e eu nunca vira uma tão faiscante polícia de choque. Deslizava, rumoroso, o que nem sabíamos que seria o último ano da Primavera marcelista; do céu escuro deslargava-se uma nervosa chuvinha miúda. Um frio do caraças, devia ser Janeiro. Eu era, em Lisboa, um parolo africanista de 19 anos, com camisas de cor garridas e umas escandalosas calças púrpuras – o artista antigamente chamado Prince deve ter andado por ali e, juntando a chuva e as minhas calças, composto e cantado então o «Purple Rain».

Ali era o Largo do Rato e aquilo era uma manif proibida. Mais uma com que o passa-palavra do Ousar Lutar, Ousar Vencer, esse homúnculo do futuro MRPP, me arrebanhara, fosse contra a guerra colonial, fosse contra a repressão na faculdade. O que eu nunca vira fora uma polícia de choque tão robusta, o esquadrão tão bem montado, os tão extensos bastões, que logo tiravam a vontade comparativista da ancestral e viril altivez do «meu é maior do que o teu». Eram umas escuríssimas sete da tarde, o alcatrão do Largo do Rato reflectia as luzes da cidade, como mais tarde, em Las Vegas, Coppola imitaria no seu «One From the Heart»: uns cem polícias de choque musculavam o começo da noite.

A minha primeira manif fora na Praça do Chile. Lá íamos, com ar de turistas acidentais, a assobiar «A Banda» do senhor Buarque de olhos azuis, prontos para ver, ouvir e dar passagem. Talvez cantar coisas de amor.

Um operário – um tipo vestido inteirinho de azul, casaco de tecido rude azul, calça grossa azul, as manchas de óleo da oficina ou da poeira da construção, só pode ser um operário – apanhou duas pedras soltas da calçada do passeio que enfiou no largo bolso do casaco. Na Praça, mal chegámos, vimos na Rua Morais Soares, erecto – e talvez a minha vadia memória me atraiçoe, talvez não fosse erecto –, em cima de um jipe, o notório Capitão Maltez. Era o comandante daquilo tudo: estavam à nossa espera.

Gesto tocante: estavam sempre à nossa espera, prontos a prodigalizar-nos vigoroso carinho e um aquecido conforto. Alguém terá gritado a palavra de ordem, duas pedras cruzaram como drones os ares, o que terá deixado vazio o bolso do operário. A prestável polícia varreu em segundos a pequena e frígida Praça do Chile, já eu e os meus amigos corríamos como espectros, a safarmo-nos dos PIDES «undercover», que medravam do chão em todas as manifs. E não é que me espalho, surfando de peito o sujo chão da rua, o que deixou a minha maoista balalaica branca em estado acusatório. Levanto-me e enfio-me numa pastelaria que havia, do lado direito de quem desce a Almirante Reis para o Martim Moniz, entre a Praça do Chile e a Portugália. Peço depressa ao balcão a desgraça diarreica de um rissol e um galão e olho para o lado. Quem, Jesus, Maria, José, é que ali estava? Eh pá, eu conheço este gajo!

A tomar o seu café, esse abençoado filho de Benguela, que dava pelo nome de Rui Jordão e era então – antes da pérfida infidelidade de que nem sob tortura direi uma palavra – a mais maravilhosa gazela do Benfica, ao lado de Eusébio e de Nené. Foi uma visão: a guerra colonial, a PIDE, a insípida e cinzenta ditadura evolaram-se, indo esconder-se na lâmpada de Aladino de onde tinham saído.

O que faria ali o senhor Jordão? Acabou de tomar o café, sim. E creio que me sorriu, espantado com a minha suja balalaica branca. Talvez pensasse no velho ditado popular: «Oi, roupa branca em Janeiro é sinal de pouco dinheiro!»

Fosse como fosse, calças púrpura, balalaica branca, a ditadura, como eu, caiu logo depois na lama.

Publicado no Jornal de Negócios, no tão suave Weekend

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