Sim, registamos com um sorriso complacente a mão de Emmanuel Macron no braço de Donald Trump e a interrupção a corrigi-lo: “Não, querido Donald, não foram os Estados Unidos, foi a Europa quem mais ajudou a Ucrânia: 60% de toda a ajuda.”
Foge o tempo e amanhã já o mundo se terá esquecido desse reparo de menino espertíssimo ao pai senil.
Do que nunca nos esqueceremos – pelo menos eu – é de uma canção que nos tenha feito estremecer de vida e desejo. “The first time ever I saw your face” é essa canção. Clint Eastwood sentiu, ao ouvi-la, esse estranho tremor cardíaco a que chamamos emoção. Ligou à cantora desconhecida e pediu-lhe a canção para um filme. A cantora, incrédula, desmaiou. Quando acordou, “The first time” era um êxito galáctico. A cantora morreu agora, aos 88 anos. Era a portentosa Roberta Flack: till the end of time my love.
Foi uma fuga hiperbólica. Os diabólicos Rolling Stones tinham sido enganados por um austero contabilista e as finanças inglesas queriam trucidá-los. Tal como eu e o meu amigo Rui, em bolandas com a tropa, nos enfiámos clandestinamente no Lobito, nos idos de 74 e 75, os Stones zarparam Mancha abaixo, fintando Sua Majestade, e desaguaram na sumptuosa vivenda Nellcôte, na aldeiazinha que dá pelo delicioso nome de Villefranche-sur-Mer, em plena Côte d’Azur.
Uma velocíssima imoralidade começou a transpirar da mansão de Nellcôte. Era a fortaleza francesa dos Stones. Como se viessem a Fátima, houve uma romaria de Lennons, McCartneys, Ringos, Claptons, mil músicos. Dormia gente pelos cantos. A Keith Richards, que narra sem freios tudo na sua autobiografia, roubaram-lhe nove guitarras. No estúdio gravava-se quando queriam, na truculenta solidão da madrugada. A droga era um fremente atractivo.
Keith conta que lhe dava na heroína com disciplina prussiana: tomava a dose certa e o cavalo era sempre de alto nível. A dose certa e ter droga da boa foi, confessa, a sua salvação: muita gente morre por comer os cogumelos errados. Havia é claro, lembram-se guitarristas e saxofonistas de visita, gente semidespida a passear-se pela casa ou estendendo a nudez sobre um sofá. Eu estou a ver, pelo canto do olho, Nathalie Delon e já lá vou.
Toda a energia de Keith Richards vinha da heroína. Podia ficar três dias sem dormir. No meio do caos de nudez, de visitas fortuitas, de desconexa balbúrdia, Keith Richards saltava o buraco do sono. Conta que o seu respeitável record olímpico foi de nove noites e nove dias, sem que ele soubesse o que era uma cama: em omnivigília como um deus. No Lobito, eu e o meu camarada revolucionário alugámos também um apartamento. Diria: um metafórico apartamento. Era só uma grande sala, com uma mesa redonda à entrada para reuniões revolucionárias, e dois colchões estendidos perto da varanda. Era um apartamento inundado por discussões ideológicas e acções subversivas, um maoismo a rastejar pelo chão de tábuas. Era uma romaria de gente incendiada por amanhãs que cantam, por «luta continua» e «vitória é certa», mesmo uma pistola a rodar sobre a mesa numa tensa e venenosa sessão de crítica e autocrítica.
Sem heroína, o que me salvou foram as paredes. Estavam cobertas de papéis colados, em cada papel uma estrofe, um poema: de Herberto a Ramos Rosa, de Ruy Bello a Rimbaud, de Fiama e Gastão a T.S. Eliot. À centrípeta paisagem maoista, que me ia apertando o tenso coração, responderam os papéis escritos na parede – à máquina, à mão – num movimento centrífugo de resgate: incendiavam-me as noites, punham-me nos dedos ainda tão jovens os cabelos da inocência, a flor lenta de uma rapariga, o seu soneto húmido, se é que eu sei do que estou a falar.
E é aqui que entra Nathalie Delon, que nunca esteve no Lobito, mas se sentou na moto de Bobby Keyes, amigo do peito de Keith Richards, ambos nascidos no mesmo ano. Bobby tinha vindo tocar saxofone com Keith: quando respirou, com os olhos, a boca, as mãos, a poliédrica beleza de Nathalie, foi como se o Anjo do Senhor o tivesse tomado ao colo. Deambularam pelas colinas da Côte d’Azur, beberam tinto, comeram sanduíches de presunto à beira dos bosques, picaram-se com a partilhada fina agulha nas nádegas. Bobby nunca tinha estado tão perto do perigo e da vertigem da transgressão. A sombra de Alain Delon, de guarda-costas inclementes e do tambor de uma pistola transpirava dos ares. E foi Nathalie que o deixou. Com um aviso: nem tentes sequer voltar a falar comigo. Salvou-lhe a vida.
Publicado no Jornal de Negócios, no suplemente Weekend.
Se chegássemos a cavalo, quem se admiraria? Tudo aquilo cheira a muito antigo e cheira bem. É, está escrito na ementa, «um lugar onde se come». É o Musso & Frank Grill. Fica na Hollywood Boulevard, entra-se e somos recebidos por um pequeno regimento de empregados vestidos com as casacas vermelhas e os laços negros de 1919. Movem-se numa aparente doce lentidão, mesmo se em segundos nos chegam à mesa.
O Musso & Frank é uma lenda nascida com o cinema mudo. Seres pré-históricos como Mary Pickford, Valentino, Greta Garbo, Chaplin vinham aqui almoçar e jantar todos os dias. Além da sala aberta, nas laterais há pequenas cabinas mais reservadas. A 3 era a de Marilyn, a 1 era de Chaplin. Toda a gente, mesmo das cabinas, vê e é vista por toda a gente. Ouvem-se as conversas. Por exemplo: «Foi em minha casa que o Roberto engravidou a Ingrid Bergman.»
E foi num jantar de três horas que David Lynch e Mark Frost ali engravidaram de «Twin Peaks», inventando à mesa os primeiros 18 episódios. Johnny Depp era o pirata que se vinha sentar toda a tarde, ao lado do velhíssimo telefone público, o primeiro telefone público pago de Los Angeles, para onde Lauren Bacall telefonava à procura de Humphrey Bogart. O jovem Depp, sedento de papéis e fama, dava aquele número aos agentes e atendia sempre que o telefone tocava.
E vem da rua, de 1919, um alarido e estrondos. São os cavalos de Chaplin, Fairbanks e Valentino a galope: o último a chegar paga a despesa, os exaltantes cocktails e o célebre fettuccini à Alfredo. A receita, a única no mundo a respeitar o original, trouxeram-na Mary Pickford e Douglas Fairbanks. Jantaram fettuccini no famoso Alfredo, em Roma, e quiseram saber como se fazia, levando a competente nega. Voltaram na noite seguinte e ofereceram a Alfredo uma colher e um garfo em puríssimo ouro, e hoje o Musso & Frank é o guardião fidelíssimo desse fettuccini sumptuoso.
E se nos sentarmos com Chaplin na cabine 1 sabemos a razão da escolha: é a única com janela para a rua, o que o autoriza a ver o cavalo que tantos jantares grátis lhe deu. Já Mick Jaegger e Keith Richards chegam de limusina com uma exigência: tem de ser o velho Sérgio Gonzalez a atendê-los. Sérgio, bem nos seus setenta, só já faz três almoços por semana, mas se os Rolling Stones telefonam a marcar, a gerência chama-o. Para servir quase sempre o mesmo aos Stones: iscas de vitela com cebolada, fritura média, a que juntam puré de batata e ervilhas.
O velho Sérgio lembra-se de um cliente, sempre bem vestido, que o acarinhava com um «Então, paizinho, como está». Era um vendaval de ternura e Sérgio respondia abraçando-o e dando-lhe um beijo na testa. O cliente morreu, veio tudo nos jornais, e Sérgio descobriu que se tratava do afamado gangster Mickey Cohen.
E ouço, na cabine ao lado, um frequentador honorário: «Estava naquela mesa o Gore Vidal, já em cadeira de rodas, ao lado um tipo muito mais novo e nervoso, amante dele. Rebenta uma discussão entre os dois, o gajinho levanta-se, raivoso, e vai à vida. O Gore fica ali pendurado, de cadeira de rodas. Eh pá, fui ter com ele e levei-o eu a casa.»
No Musso & Frank, a ementa conserva os pratos de 1919, uma casa de bifes com sabores internacionais, que ainda tem rim de cordeiro com bacon, sanduíche de língua de vaca ou o germânico sauerbraten. E tem fantasmas: andam por ali em lençóis brancos, Steinbeck, Hemingway, Faulkner, T. S. Eliot, Aldous Huxley, Dorothy Parker. Correm atrás de uma nua Marilyn.
Eu fui lá algumas vezes, nunca a cavalo, mas sentei-me, em 1986, no banquinho vermelho de Steve McQueen ao balcão.
Publicado no Jornal de Negócios, no Weekend das sextas!
Este ano celebramos os 80 anos do fim da II Guerra Mundial. Um acontecimento escancarou as portas da guerra: o pacto que Hitler e Estaline assinaram, pelas mãos dos seus ministros von Ribbentrop e Molotov.
Uma coisa me espanta: por que razão não há praticamente nenhum livro na edição portuguesa sobre esse Pacto nefando?
Bem sei que a exaltante ideia do «melhor amigo» ganhou um nefando mau nome nos últimos Invernos do nosso descontentamento. Notas de euros a marcar livros e obras em apartamentos em Paris puseram o «melhor amigo» sob suspeita. Autorize-me o leitor, porém, um esforço metafísico para resgatar das trevas cavernosas a angélica figura do amigo. Venham comigo a uma praia do Hawaii.
Ali, na fímbria do mar, estão os cineastas Steven Spielberg e George Lucas. Acreditem ou não, estão de calções, peito ao léu, a rebolarem-se na areia enquanto constroem castelos efémeros. Juntíssimos como só os melhores amigos conseguem estar juntos. Um ano antes, Lucas tinha vindo visitar Spielberg ao Alabama, a um monumental plateau montado nuns abandonados hangares da Força Aérea americana. Filmava-se «Encontros Imediatos do Terceiro Grau». Lucas acabara a rodagem do seu primeiro «Star Wars» e estava tão pessimista e angustiado como André Ventura ao saber dessa coisinha virtuosa e edificante que foi e é «a cena das malas, meu!»
Ao ver a grandeza do cenário onde Spielberg filmava, deu-lhe um abraço e jurou: «Tal como já fizeste com o «Tubarão», este «Encontros Imediatos» vai arrasar. Eu é que estou desgraçado. Ninguém vai ver o meu «Star Wars»!»
Spielberg foi buscá-lo ao chão onde já Lucas jazia, desumilhou-o, e lançou-lhe um desafio: «Bora lá, a uma aposta: das receitas destes nossos filmes, cada um dá ao outro 2,5% do que ganharmos.» Lucas agradeceu, sentiu-se até melhor.
«Encontros Imediatos» teve um êxito notável, com uma receita bruta de 300 milhões de dólares, mas «Star Wars» estreou-se com cifrões galácticos: milhões de espectadores, a receita já nos «billions», logo ali mil e seiscentos milhões de dólares. Os dois amigos fizeram o «acerto de contas» e George passou a Steven um ridículo cheque de 40 milhões de dólares. Ainda hoje, de vez em quando, em Dia de Acção de Graças, Spielberg vê cair no seu modesto mbway mais um milhão e qualquer coisa, resultado do estrondoso falhanço que Lucas augurava a «Star Wars». Eis o que, diria eu, fortalece uma amizade.
E o que queria dizer é que há mesmo entre os cineastas daquela geração, os chamados «movie brats», Steven, George, Scorsese, De Palma e Coppola, uma comunhão acima do sulfuroso ciúme. Todos ajudaram Lucas: Spielberg apresentou-o a John Williams, que compôs a prodigiosa música do filme; Brian De Palma inspirou o texto de abertura de «Star Wars», a cruzar como uma nave o ecrã, de baixo para cima, e encurtou o texto inicial para três parágrafos. E há mais dádivas entre eles: Spielberg filmou, para o «Scarface» de De Palma, a cena de tiroteio com Al Pacino de pulposa metralhadora na mão, no cimo de uma escadaria; Scorsese trocou com Spielberg «A Lista de Schindler» pelo «Cabo do Medo».
E quando cada um deles estreava um filme que passava a ser o filme mais visto de sempre, «Star Wars» para Lucas, o «E.T.» para Spielberg, compravam uma página inteira de publicidade da revista «Variety», com elogios ao amigo de fazer corar uma menina de 15 aninhos.
Voltemos à praia, ao Hawaii. Steven acabara de se espalhar com o «flop» que foi «1941». Enquanto constroem castelos de areia, George diz a Steven que tem uma ideia para uma trilogia: um arqueólogo aventureiro que se chama Indiana Smith. Mas tem de ser Steven a dirigir os três filmes. Spielberg torce o nariz: «Só se os guiões já estiverem escritos.» Lucas mente: «Estão escritos os três!» Spielberg aceita, mas com uma condição: «O arqueólogo tem de se chamar Indiana Jones.» Castelos de areia numa praia do Hawaii.
Gostamos da mesma coisa. Agora que faz frio, amanhã quando fizer calor, é nesta almofada que deitamos a nossa cabeça: obrigado por serem amantes de livros.
E aqui estamos, no Inverno que não tem de ser o do nosso descontentamento, na penumbra do lento tempo que passa, olhos na doce proliferação das ervas e das infatigáveis e peregrinas águas, mais um livro na mão. Os meus livros de Fevereiro chegam com linhas de fogo, letras de lume.
Celebraremos os 80 anos do fim da II Guerra Mundial ao longo de 2025. Começamos por onde se deve começar, pelo começo. E o começo foi ditado na escura noite de 23 de Agosto de 1939, quando Hitler e Estaline, nazis e comunistas, assinaram um pacto. Oito dias depois Hitler sangrava a Polónia e logo a seguir os soviéticos retalhavam, braço dado com os nazis, essa nação independente. Porque é que Estaline não disse «não é não» a Hitler? Um livro, de Manuel S. Fonseca (confesso, sou eu), O Pacto Nazi-Soviético, oferece uma narrativa, perguntas, respostas, e todos os documentos, os públicos e os secretos, bem como os discursos de Hitler e de Estaline. Uma conclusão inescapável: esse pacto foi o tapete vermelho para a monstruosa guerra.
Noutro livro, do historiador Claude Quétel, Hitler, Verdades e Lendas, há respostas a 20 perguntas essenciais sobre a figura dantesca que gerou o maior horror do século XX: de onde vinha o seu ódio ao judeu (hoje, de novo, em voga), que vida privada tinha, e se poderia ter sido travada a sua ascensão?
Não é um livro de guerra, mas é de paixões. Na nossa colecção de Atlas Históricos, uma obra que é uma oração: Atlas das Religiões: Paixões identitárias e Questões Geopolíticas, de Frank Tétart: leia e veja, em mais de cem mapas, o nascimento do hinduísmo, judaísmo, cristianismo e do Islão. E como se expandiram e como hoje se misturam com a política, radicalismos e a guerra. Meu Deus, a que deus ou deuses precisaremos de rezar?
E tenho aqui na palma da mão três romances para amenizar, espero eu, a hostil floresta dos conflitos e da guerra. De Machado de Assis, recuperamos o tão irónico e dicotómico, fratricida ou talvez não, Esáu e Jacob. Há 16 anos sem uma nova edição entre nós, pintámos-lhe a capa de amarelo torrada: é boa, mas o miolo, de ressonâncias bíblicas, é muito melhor.
Já A Brigada da Culpa, a estreia de Rui Galiza, inventa um Portugal distópico e autocrático tomado por um movimento que impõe a «reparação história» e obriga a que todos e cada um assumam a culpa, a sua tão grande culpa. É ficção, e no entanto cheira aqui a um esturro que anda por aí a passar-nos pelo nariz.
Por fim, de João Nuno Azambuja, vencedor do Prémio UCCLA-Revelação Literária, chega Breviário da Vingança, uma digressão de conspiração, intriga e assassínios na Roma de Tibério, no caldo histórico em que irrompe uma tribo estranha de deserdados da vida: os primeiros cristãos. Aurínia, uma menina de 6 anos, é a chave oculta de uma trama com todas as regras do romance histórico.
Os testemunhos são como as criancinhas: deixem vir a nós todos os testemunhos. No que parecem histórias fugazes acaba sempre por estar o eterno drama humano. Todos ouviram falar de Gisèle Pelicot, a brava mulher que se resgatou do inferno da «culpa da vítima» devolvendo o vitupério ao criminoso, neste caso ao marido que a violou acolitado por um bando cobarde. E Deixei de te Chamar Papá é o testemunho de aço de Caroline Darian, a filha de Gisèle e desse pai tenebroso: não há perdão à face da terra que a faça aceitá-lo, sequer reconhecê-lo.
OsLabirintos Insondáveis do Suicídio, do jornalista Luís Henriques Antunes, com testemunhos das famílias, dos especialistas e de quem já passou por tentativas de suicídio, responde a esta pergunta: o que leva alguém a matar-se? Ou a esta tão dolorosa: o que sente a família de quem se matou?
Sete anos depois da 1.ª edição, relançamos o testemunho vibrante de Luís Osório, Mãe, Promete-me Que Lês, uma carta à própria mãe, um diálogo de uma franqueza que não teme a mais nua exposição. E agora, deixem-me contar, e cantar de alegria, o nascimento de uma nova colecção. Chama-se A Minha Estante. É um risco? É. E grande. Começamos com dois livros que são o espelho do que A Minha Estante será sempre: livros que nos respondem à pergunta «o que sabemos sobre isto?» e nos dão informação, conhecimento e síntese, tudo com ciência, elegância e sem violência, contrariando este tempo de triunfo de ignorante desinformação e mil «fake news». Os livros têm capas de uma tão sóbria claridade que só me apetece dar-lhes beijos. Eis os primeiros dois títulos: História do Japão, de Michel Vié, que nos leva da cidade imperial à renovação Meiji; e As Guerras de Religião, de Nicholas Le Roux, relato das conspirações e massacres entre católicos e protestantes, no século XVI, guerra religiosa que assolou toda a Europa. O melhor é mesmo comprarem uma pequena estante: há mais livros A Minha Estante a chegar nos meses e anos que aí vêm. São os meus onze livros de Fevereiro, para ler enquanto do céu cai a infatigável e persistente chuva.
Já a Rita Fonseca prossegue e persegue a saga dos novos cow-boys. Com Perdida e Atada, de Lyla Sage, a minha filha Rita foi instalar-se no Rancho Rebel Blue para assistir ao ódio à primeira vista da imparável Teddy e do consciencioso Gus. Já sabem como é que ódios à primeira vista acabam? Não estejam assim tão convencidos, sobretudo se surgirem cavalos, vacas, laços, pasto, e os suede fringe cow-boys jackets, que eu sempre quis usar quando era miúdo, em Luanda, e ia ver filmes ao Miramar. Já não se projectam filmes no Miramar? Então leiam, se faz favor, Perdida e Atada, e ofereçam-me um desses suede fringe cow-boys jackets, que o miúdo que ainda aqui me mora já merece.
Aqui de calças brancas, mas foi pouco depois desta magnífica celebração em Luanda
Eram para aí umas sete da tarde, e eu nunca vira uma tão faiscante polícia de choque. Deslizava, rumoroso, o que nem sabíamos que seria o último ano da Primavera marcelista; do céu escuro deslargava-se uma nervosa chuvinha miúda. Um frio do caraças, devia ser Janeiro. Eu era, em Lisboa, um parolo africanista de 19 anos, com camisas de cor garridas e umas escandalosas calças púrpuras – o artista antigamente chamado Prince deve ter andado por ali e, juntando a chuva e as minhas calças, composto e cantado então o «Purple Rain».
Ali era o Largo do Rato e aquilo era uma manif proibida. Mais uma com que o passa-palavra do Ousar Lutar, Ousar Vencer, esse homúnculo do futuro MRPP, me arrebanhara, fosse contra a guerra colonial, fosse contra a repressão na faculdade. O que eu nunca vira fora uma polícia de choque tão robusta, o esquadrão tão bem montado, os tão extensos bastões, que logo tiravam a vontade comparativista da ancestral e viril altivez do «meu é maior do que o teu». Eram umas escuríssimas sete da tarde, o alcatrão do Largo do Rato reflectia as luzes da cidade, como mais tarde, em Las Vegas, Coppola imitaria no seu «One From the Heart»: uns cem polícias de choque musculavam o começo da noite.
A minha primeira manif fora na Praça do Chile. Lá íamos, com ar de turistas acidentais, a assobiar «A Banda» do senhor Buarque de olhos azuis, prontos para ver, ouvir e dar passagem. Talvez cantar coisas de amor.
Um operário – um tipo vestido inteirinho de azul, casaco de tecido rude azul, calça grossa azul, as manchas de óleo da oficina ou da poeira da construção, só pode ser um operário – apanhou duas pedras soltas da calçada do passeio que enfiou no largo bolso do casaco. Na Praça, mal chegámos, vimos na Rua Morais Soares, erecto – e talvez a minha vadia memória me atraiçoe, talvez não fosse erecto –, em cima de um jipe, o notório Capitão Maltez. Era o comandante daquilo tudo: estavam à nossa espera.
Gesto tocante: estavam sempre à nossa espera, prontos a prodigalizar-nos vigoroso carinho e um aquecido conforto. Alguém terá gritado a palavra de ordem, duas pedras cruzaram como drones os ares, o que terá deixado vazio o bolso do operário. A prestável polícia varreu em segundos a pequena e frígida Praça do Chile, já eu e os meus amigos corríamos como espectros, a safarmo-nos dos PIDES «undercover», que medravam do chão em todas as manifs. E não é que me espalho, surfando de peito o sujo chão da rua, o que deixou a minha maoista balalaica branca em estado acusatório. Levanto-me e enfio-me numa pastelaria que havia, do lado direito de quem desce a Almirante Reis para o Martim Moniz, entre a Praça do Chile e a Portugália. Peço depressa ao balcão a desgraça diarreica de um rissol e um galão e olho para o lado. Quem, Jesus, Maria, José, é que ali estava? Eh pá, eu conheço este gajo!
A tomar o seu café, esse abençoado filho de Benguela, que dava pelo nome de Rui Jordão e era então – antes da pérfida infidelidade de que nem sob tortura direi uma palavra – a mais maravilhosa gazela do Benfica, ao lado de Eusébio e de Nené. Foi uma visão: a guerra colonial, a PIDE, a insípida e cinzenta ditadura evolaram-se, indo esconder-se na lâmpada de Aladino de onde tinham saído.
O que faria ali o senhor Jordão? Acabou de tomar o café, sim. E creio que me sorriu, espantado com a minha suja balalaica branca. Talvez pensasse no velho ditado popular: «Oi, roupa branca em Janeiro é sinal de pouco dinheiro!»
Fosse como fosse, calças púrpura, balalaica branca, a ditadura, como eu, caiu logo depois na lama.
Publicado no Jornal de Negócios, no tão suave Weekend