
Ele fuma. E não, o que explica David Lynch, de “Eraserhead” à série “Twin Peaks, The Return”, não é o tabaco, é a sanita. O posterior de David gosta de sanitas inteligentes. As suas preferidas são as Ove Decors: modo de luz nocturna, o assento deliciosamente aquecido, controle remoto e, oh! meu bom deus, vários módulos de cuidadosa lavagem, que nem um bidé.
Lynch explica: “É a tecnologia moderna a funcionar — numa sanita! Com uma lâmpada de espectacular luz azul-lavanda. Lava-nos. Seca-nos. Faz a coisa toda.”
É o que, agora que está morto, Lynch acaba de me dizer. “Olá, David!” E aqui estamos os dois a tomar café. Logo ele que ainda gosta mais de café do que eu. E conto-lhe o quanto lamento que nunca tenha vindo à Vila Alice, o meu bairro colonial de Luanda.
Ouvi alguém jurar que os filmes de Lynch eram a prova provada de que ele denunciara o pesadelo por trás do sonho americano. Mentira, protesto eu. A cabeçorra de Lynch era uma cabeça de criança e na sua delirante cabeça de criança pesadelo e sonho são indistinguíveis.
Do que ele gosta é de subúrbios, por isso teria gostado da Vila Alice e de se ter sentado comigo a enfiar formigas, besouros e gafanhotos no meu frasco de vidro preferido. Ou talvez tivesse ajudado a tirar das minhas costas nuas, agarrando-a com delicadeza, a esponjosa barata que um dia lá foi parar em vôo. Ou a pisar uns moles caracóis negros que preguiçavam no capim em dias de chuva. Está tudo roubado a todas as infâncias de subúrbios, no começo de “Blue Velvet”, nesse relvado que pulula de vida, de mil insectos, esses extraterrestres silenciosos e rastejantes que vigiam o mundo.
Segundo café, terceiro cigarro, e Lynch não se contém: “Somos expelidos do ventre da nossa mãe e a vida começa.” (Na Vila Alice, os termos não eram bem estes, mas adiante.) O cinema de Lynch quer ser um tributo de amor a essa vida povoada de psicopatas, refeições bizarras, assassinos, tanto sexo, bruxas más e canções tão boas. Ora, parafraseando o famoso Cristo, em verdade, em verdade vos digo, cada filme dele começa por uma ideia: “Eu amo a ideia pela ideia e amo o que o cinema pode fazer por essa ideia” reforça Lynch. Já bicas vão quatro, cigarros seis.
Os filmes de Lynch são filmes para detectives. Não me entendam mal: são filmes para toda a gente, porque todas as pessoas têm em geral bom espírito detectivesco, todos gostamos de investigar, esmiuçar pistas e descobrir soluções. O David ri-se e conta-me que um dia lhe fizeram este pedido:
“– Teoricamente poderia dar-nos chaves para abrir os sentidos ocultos dos seus filmes?
– Teoricamente, sim!
– Quer então fazê-lo agora?
– Não!”
E sobre o amor acrescenta: “Amo o cheiro de tabaco. É simples, amo. Odeio o cheiro de maconha.” Lynch não fez drogas: o seu LSD ou crack foi a Meditação Transcendental. A linha estética de Lynch é a humanidade: o amor dele à humanidade é tão grande que quer e gosta de levar a natureza humana ao extremo. Mas recusa fazer arte a partir do sofrimento, ser o artista enrolado na sua própria dor, um visionário obscuro e profético: “Por razões de saúde, estou proibido de pensar nesse tipo de coisas”, explica.
Lynch faz dois tipos de filmes: no final de “Eraserhead”, “Blue Velvet”, “Wild at Heart”, “Twin Peaks”, “Mulholand Drive”, explodimos eufóricos, ou melhor, implodimos numa alegria que só é alegria por ser perplexa. Já no final de “Elephant Man” e de “Straight Story” desfazemo-nos em doçura. Lembro-me: foi Lynch que disse mais ou menos isto. E agora, dez bicas, um maço de cigarros depois, quero é experimentar a sanita dele.
Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios