Leilão para 2025

Entra-se num ano, por exemplo em 2025, como quem, para participar num leilão, visita uma cidade desconhecida, gélida, de língua hostil:  três graus abaixo de zero e a rua onde caminhamos talvez nos leve ao centro, ao calor de um restaurante – o leilão há de ser ali perto. Assim se entra no Novo Ano, a licitar numa língua desconhecida.

Um cidadão francês quis entrar em 2025 ostentando o relógio que o general De Gaulle usava. É, por certo, cidadão de uma das cidades gélidas do norte de França, e comprou o relógio do general, um Lip, num leilão por 550 mil euros. E lembro-me que no pulso do meu pai havia um humilíssimo Cauny, também o primeiro relógio que ele me ofereceu, a mim que sempre um relógio me pareceu meia algema, o laço com que o penoso tempo nos amarra.

Quem foi, de Dallas no Texas, o sonhador em delírio fetichista que, por 27 milhões de dólares, comprou os sapatinhos vermelhos, enfeitados a rubis, que Judy Garland usava no Feiticeiro de Oz? Que poderes inusitados espera o poético comprador encontrar nesses delicados sapatos? Virá mesmo a calçá-los e a bater os tacões à espera da viagem para lá do arco-íris, em glorioso technicolor, descobrindo Donald Trump na Terra de Oz?

Tiro-me de cuidados e é descalço que quero entrar em 2025. Deixar tudo para trás? Mastigar e digerir o que ainda haja para que de 2024 nada sobre? Foi o que, e desculpem ter deixado o seu nome no ano passado, fez o comprador que, por seis milhões de euros, comprou a famosa banana que o intrépido artista Maurizio Catellan colara com fita adesiva a uma parede. E já me lembro, o comprador chamava-se Justin Sun. Comprou essa obra de arte, retirou a fita adesiva, descascou a banana e comeu-a. Valeu a pena? “É muito melhor do que qualquer banana que já comi”, jurou o eufórico Justin.

E quem não quer uma moeda de ouro, se for uma moeda romana! Esta é, talvez, a mais rara das moedas imperiais. Foi leiloada em Genebra e a compra fechada por quase dois milhões de euros. O que a faz rara é ter numa das faces a efígie de um assassino, Brutus, esse a quem, quando o seu punhal rasgou a carne imperial, Júlio César disse um singelo e quase enternecido, seguramente mais expletivo do que dubitativo, “Também tu, meu filho”. Que melhor companhia do que entrar em 2025 com a efigie de um assassino no bolso?

Aqui estou, na cidade gélida, e é a minha vez de licitar. Que quero levar para 2025? Pedirei uma caneta, uma esferográfica, um dos lápis que seja, com que Jorge de Sena escrevia ou rabiscava desenhos? A tesoura de barbeiro com que o meu amigo Mário Prazeres me cortou pela primeira vez os meus cabelos hippies? Ou a bata de enfermeiro do mais velho Correia Nunes, que me punha, de novo, a ouvir os King Crimson, ao limpar-me os rolhões dos ouvidos que a água da praia pusera em rocha?

E lá do fundo dos tempos, já sei, o que queria era mesmo reencontrar a perdida harmónica do meu pai. O bandolim dele, há muito que o dou como perdido, mas onde andará a sua harmónica de dupla face, com 80 palhetas, de fabrico alemão? O meu pai soprava numa Hohner Comet, lindíssima, cromada, estojo de veludo, tão vermelho e a ouro como os sapatinhos do Feiticeiro de Oz. Nas noites tropicais de Natal e de Ano Novo, em Luanda, o musseque ali ao lado todo a rir-se e a dançar em quimbundo, da Hohner Comet a bailar-lhe nos lábios, o Artur, como da lâmpada de Aladino, fazia sair corridinhos, fandango e tangos. Eu quero a dourada Hohner de volta, quero de volta essa felicidade que não se importa de conviver com a morte, com a inescapável pequena dor de estar vivo.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, das sextas-feiras

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