Um gajo muito mais do que jeitoso

Agora digam-me, quem é que faz comédia, stand-up, com a mãe e a mulher, as próprias, em cima de um palco? Era o que, em 1953, estava eu a nascer e Estaline a morrer, fazia o obsceno Lenny Bruce.

Olhem para Ricardo Araújo Pereira. De acordo: é bonito. Quem inventou o cómico bonito foi Lenny: era um “handsome guy”, um gajo muito mais do que jeitoso, cara sedutora, um Brad Pitt de nos fazer morrer a rir.

Ah, a voz de Lenny! Sai-lhe da voz de lâmina macia um cheesecake de sátira, em que se misturam, bem batidas, as claras em castelo da política e da religião, por cima a cobertura de gemas e açúcar que é o sexo: na boca tudo se mistura num orgasmo de obscenidades. A obscenidade em Lenny vem em contexto, diria eu, se a quisesse distinguir do que o bom Fernando Rocha fazia nos tempos áureos do Levanta-te e Ri.

A boca de Lenny era igual ao saxofone de Charlie Parker: espontânea, cândida, de libérrimas associações, qualificativos que roubo ao que se escreveu depois da mais arrebatadora sessão de stand up de Lenny, que pôs o Carnegie Hall a seus pés. E vejam, foi a 4 de Fevereiro de 1961, numa noite de calamitosa tempestade de neve em Nova Iorque, enquanto na noite tropical, calientíssima, de Luanda, saíam sub-reptícios do musseque os “heróis que queriam quebrar as algemas” a atacar à catanada cadeias e esquadras. Terá sido um sopro dessa audácia independentista, sopro levado por Kianda ou Iemanjá, que inspirou Lenny a fazer da performance do 4 de Fevereiro uma oração?!

Estão ali a fazer-me sinal para que abra um parêntesis. Lenny foi preso. Enchia a boca de palavras inglesas de quatro letras, às vezes mais, como é o lambido caso do termo “cocksucker”. Quanto mais o prendiam mais ele se esticava e até hoje voltariam a meter na pildra o seu explosivo “Is there a nigger in the room?

Porém – tratem com carinho este porém – se há uma fragrância a soltar-se dos monólogos de Lenny, da torrente de sarcasmo e palavrões, é a ternura. Sim, da voz do Ricardo Araújo Pereira, esse Lenny sem palavrões, também: ninguém pode fazer comédia sem ternura. Por dentro, o cómico é de veludo.

 Por falar em veludo, Lenny adorava strippers. Casou com uma, Honey Harlow. Fracativos de massas e a precisarem de pagar contas, o jovem Lenny gamou um hábito de padre católico, pôs o alvo colarinho clerical, e bateu um bairro tipo Quinta da Marinha, pedindo, em nome de uma real “Brother Mathias Foundation”, doações para os leprosos da Guiana, o que era religiosamente falso.

Já milhares de dólares colectados, a polícia abordou-o. Pediram-lhe uma licença, que ele não tinha. Lenny, fardadinho de padre, ainda veio com um “Ai Santo Deus, até falei disso com o Cardeal, depois da missa…” mas logo um sub-chefe do tamanho de John Wayne, lhe gritou um “Hey, já para aqui, com um raio”.

 Logo apoiado por velhinhas e viúvas, Lenny não foi. O polícia insistiu, ao que Lenny opõs um dubitativo “Sir?”. Grita-lhe o John Wayne: “Tu ouviste bem, punheteiro. Vê se tiras a merda dos ouvidos!” Com vozinha de arcanjo, Lenny respondeu: “Meu filho, não vejo razão para usar obscenidades!

Já uma das viúvas engatilhava uma caçadeira ao lado de Lenny. Prevenindo a tragédia e cantando “Sou valente, quando Ele caminha ao meu lado…” Lenny rendeu-se. O polícia que o segura diz-lhe “Fazes um gesto para aquelas malucas e esmago-te a cabeça com o bastão!” Com a ternura de um seminarista de Viseu, Lenny recriminou-o: “O incitamento à violência não é o recto caminho do Senhor, meu filho.”

Por intervenção do bispo, Lenny foi apenas condenado por mendicidade.

Publicado no Jornal de Negócios, no suplemento Weekend, que dá brilho a todas as sextas-feiras.

4 thoughts on “Um gajo muito mais do que jeitoso”

  1. Belushy, Ackroyd e afins vieram só depois, presumo eu. Bob Fosse fez-lhe um filme (que não vi, aliás). Belo texto. Natalício! 🙂

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  2. Só tu é que podes elucidar este mistério: encontro em todo o lado que o Império fechou portas em 1983. Acho cedo. Nessa altura ainda ia ao cinema. Só deixei em 1986, quando compreendi a inutilidade de ver sombras numa parede, que só engordam os gatos gordos de Hollywood. Encontro a programação do Império, e do Estúdio, até novembro de 1990.  Sabes quando é que ele fechou?

    https://feriadoauportugal.blogspot.com/2024/12/cinema-imperio-perde-uso-cultural.html

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