Rejeitar a água e beber vinho

Aos que, atirando tinta às montras ou colando-se ao alcatrão, querem estarrecer a gravata pipi do Dr. Luís Montenegro ou o beto colarinho do menino Dr. Pedro Nuno Santos, um aviso, a iconoclastia é velha como caraças.

Para não voltar atrás mais de 150 anos – que senão é muito longe e dá-me tonturas – peço que venham assistir, em 1878, em Paris, à criação dos Hidropatas. Boémios, pouco apreciadores de água, que rejeitam em favor do vinho, eis o que é ser hidropata.

É um movimento que quer provocar as artes estabelecidas, desafiando todos os que não sabem desenhar, pintar, escrever, cantar a fazer o que eles chamam “obras incoerentes”. É um delírio de produção loucamente híbrida, em sessões que chegam a reunir 350 pessoas – ou seja, mais do que os actuais leitores de poesia em Portugal.

Não me contenho e bato palmas ao entusiasmo que extravasava do Café de la Rive Gauche para todo o Quartier Latin então ainda a salvo da praga inquisitorial de tudo o que é “sistémico”, esse bocejo teórico dos nossos dias. Um funcionário público podia ser tenor ou barítono, o maquinista pintor, um poeta escultor, um pintor poeta. O essencial é que – no exercício pleno e consciente da incoerência – cada um fosse aquilo que não era. Custa-me até escrever isto, porque em certo sentido é o resumo cruel da minha vida, mas adiante.

Tal como acontece no Bairro Alto, os clamores eram tão estrídulos que os moradores protestaram. Os Hidropatas, que tanto podiam ser pintores ou tipógrafos, poetas ou bibliotecários, escultores ou burocratas, responderam com petardos e fogo de artifício criando autênticos tumultos. Lenine estaria, se alguma coisa soubesse de Hidropatia, de acordo comigo: o tumultuísmo foi a fase infantil do hidropatismo.

O incoerente, aviso já, tinha um código de comportamento tão exemplar como o do camarada Paulo Raimundo, mas com uma variação. O Incoerente, e não sei porquê agora deu-me para a maiúscula, vai na rua e cumprimenta toda a gente, aperta a mão ao senhorio, saúda o polícia, faz uma vénia à dama que passa. Ó meu Deus, mas se vê um co-Incoerente – e cito o Hidropata fundador Emile Goudeau – o Incoerente “desagrega-se e desarticula-se”, começa a fazer caretas, a boca em esgares cabalísticos, as pernas a agitarem-se numa cadência extravagante.

Jules Lévy, que como bom Incoerente, era nervoso, robusto, jovem e ágil, sem reumatismo nem cefaleias, resgatou a crise dos Hidropatas com uma muito iconoclasta exposição artística. A exposição, no dia 1 de Outubro de 1882, foi em sua própria casa – e eu convido os iconoclastas actuais a atreverem-se a semelhante coisinha estarrecendo o papá e a mamã.

Casa cheia, à procura desse absurdo que Ionesco definiu como sendo aquilo que “não se aguenta nem de pé nem sentado e ainda menos deitado”, uma multidão sedenta de excitação veio rir, beber, declamar, tudo isto mandando abaixo os clichés, enquanto se entretinha a ver quadros, caricaturas, poemas de Incoerentes que não sabiam pintar, desenhar ou escrever. Foi um êxito admastórico, se me permitem o neologismo.

E o que defendo é que as Artes Incoerentes, que Jules Lévy, nesse distante 1.º de Outubro, começou no seu quarto, porventura sobre a colcha da sua cama – Mona Lisa a fumar um cachimbo, a boca da Lua a engolir um homem –, são pai e mãe do Dada e Surrealismo e do urinol de Marcel Duchamp, que hoje os museus acarinham, numa glorificação póstuma do absurdo.

Nada que o Hidropata Goudeau não tivesse previsto. Dizia ele: “Um Incoerente entra na reforma casando-se ou apanhando reumatismo.

Publicado no Jornal de Negócios

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