
Meu Deus, como pode ser falsa a idade. Vejam: o meu cartão de cidadão brinda-me com uns mimosos 71 anos de vida. Porém – e meço bem o peso da adversativa –, porém, nada mais falso do que essa crua e pretensa idade.
Pergunto: pode estar vivo quem não come? Ora, eu só me lembro de começar a comer aos 15 anos. Saía como um animal nocturno de casa de meus pais, com os amigos Simão e Abílio, devorava búzios, camarões, caranguejos de Moçâmedes, quitetas. Não era a singela dieta de um canibal, esse hoje menosprezado gastrónomo de épocas remotas, que conservava gostos simples, mantendo-se num regime natural pré-porcino. Ao contrário de qualquer senhor canibal, porcinas iscas, rins e febras faziam parte da pantagruélica fome que me nasceu aos 15 anos
Sim, eu já conhecia o restaurante, mas não comia. Na minha rua da Vila Alice, em Luanda, mesmo em frente ao meu Mário barbeiro, era a Churrasqueira, morava por cima o Simeão. Tinha quartos, pensionistas, comida para fora e dois matraquilhos. Passei ali inteiras tardes de férias durante dez anos e nunca gastei um angolar que fosse a não ser a jogar matrecos. O dono, o Senhor João, de camisola interior de alças, uma tropical gota de suor a prender-se aos pêlos do peito, vinha com um facalhão que virava para o lado boto e nos passava pela garganta. Gritávamos como uns degolados.
A Churrasqueira da Vila Alice nunca teve um anúncio como o que, nos anos 50, publicou, em França, o Auberge de l’Oef Dur, a que, não sendo eu um fã de ovo cozido, chamarei a Estalagem do Ovo Duro. Era a hora e meia de Paris, em Saint-Cyr-Sur-Morin, e lá se falavam quatro línguas, o espanhol, inglês, alemão e francês. O anúncio, além dos licores de marca, prometia álcoois de países longínquos e estupefacientes. Tinha também, coisa que a minha Churrasqueira nunca ofereceu, e copio os termos do anúncio, “salões para enterro da vida de rapaz”, a par de selectos “five o’clock teas”. Estando em pleno campo, a casa lamentava não dispor de telefone, pedindo aos clientes que escrevessem ou telegrafassem na véspera. Pormenor de alto gabarito era a nota final: “Será oferecido um croissant graciosamente a todo o consumidor até ao dia em que a casa declare falência.”
E volto aos meus 15 anos, mais de ovos estrelados do que cozidos. Batia finos geladíssimos, como nunca mais os verei a estalar, no Polana, para os lados da Rua Direita. E perto do Porto de Luanda comi os mais tenros pregos no pão do mundo, num tasco, o Olho do Cu, que devia desfazer a carne com o leite da cana do mamoeiro. Permiti-me por vez o luxo das sanduíches de presunto em pão aquecido, no Baleizão, quando aos 17 anos, era eu ajudante de tesoureiro, ia buscar ao banco, com o motorista do Centro de Medicina Física e Reabilitação, o dinheiro dos salários. Tínhamos uma malinha com dois mil contos numa mão, a outra a balouçar entre a sanduíche e o respeitável fino do meio-dia.
Mais luxo ainda, já as cores da revolução a aparecer, eram as noites do Pólo Norte, o snack-bar que me parecia a coisa mais selecta do cosmos. Era o padre Janeiro e o Abilio que pagavam – da caixa das esmolas? – e juntava negros e brancos, o Mindo, o Cesarito, Victor e eu, católicos de comunidade de base a sonhar, em tostas e combinados, cucas e nocáis, com um mundo melhor e mais bailarino. E aí está, bastava que um de nós dissesse a palavra “dança”, para que o nosso padre logo contasse a história de Monsenhor Duchesne, bispo conservador francês. O que achava ele do tango, quiseram os jornalistas saber, e respondeu célere: “Só não sei porque é que se dança em pé!” Ríamos e saía mais um fino.
Publicado no Jornal de Negócios
Tive assim em minha casa um rapaz de 15 anos. E como não havia onde matar a fome que tinha sempre, a coisa ficava mesmo por penates. Não dávamos conta daquela fome esganada. Fosse almoço, jantar ou qualquer outra refeição. Em certa noite escura, sem luz e sem água, todos nós receosos do caminho do poço depois do laranjal, ninguém se atrevia ao bolo de bolacha intacto. Pois ele chegou e comeu-o inteirinho. Sem gota de água. Em seguida venceu o medo (não era o menos medroso de nós cinco), agarrou no cântaro e foi enchê-lo. A sede era negra. E não havia finos por aqueles lados.
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Um bolo de bolacha inteiro faz fome a qualquer um. Boa história.
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