Pedro e Luís já dançam

Comecemos pelas pernas. Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro têm pernas altas. Umas pernas de Cyd Charisse? Bom, talvez umas pernas de Fred Astaire ou Gene Kelly. E pergunto, serão, Pedro e Luís, bons dançarinos? Gostava de os convidar para virem ver juntos um filme musical, um dos clássicos musicais do tempo dessa Hollywood que tinha mais estrelas do que estrelas havia no céu.

Há uma tonelada de cenas que se poderiam roubar aos musicais, cenas com o diáfano Fred Astaire, que talvez se pareça mais a Luís Montenegro, ou com o arrebatado Gene Kelly, de que Pedro Nuno Santos herdou um feitiozinho impulsivo. Tenho de escolher o filme a que os levo: de tão ocupados com o Orçamento o tempo escasseia-lhes e sei bem que só lhes posso mostrar uma cena. É um crime lesa-musical, mas se é para prevaricar, escolho, do “Singin’in the Rain”, a cena em que, depois de beijar o Orçamento – ah, desculpem, a namorada –, Gene Kelly dança sozinho à chuva.

É um atentado ao bom gosto deixar de fora Cyd Charisse? Sim, é. É como assaltar a loja da Tiffany’s e vir de lá sem os diamantes. Mas há justiça poética, uma ligeira e insidiosa metáfora, nessa cena em que Pedro (quero dizer, Gene Kelly), sapateia sozinho à chuva. Luís e Pedro, uns dirão que mais Pedro do que Luís, gostam, afinal, de dançar sozinhos.

Quando assistimos a um filme, praticamos uma coisa a que se chama a suspensão da descrença. No escuro, deixamos de lado o nosso espírito crítico e passamos a acreditar que é verdade o que estamos a ver. Num musical, fazemos uma dupla suspensão da descrença. Não só acreditamos que é verdade, como achamos que a forma cantada e dançada de representar é o que fazemos na vida real – e note-se que nada disto é estranho a Luís e Pedro, cujas acções e bailados governamentais, cujas serenatas oposicionistas e orçamentais não seriam possíveis sem uma bem blindada suspensão de descrença! Alguém me sugere que mais Pedro do que Luís, mas quem sou eu para os julgar.

E agora esqueço-me de Pedro e Luis e continuo a dançar, mas só com Gene Kelly. Ora, o que eu queria mesmo dizer é que a cena de Gene Kelly a dançar à chuva é afinal uma das mais eufóricas afirmações da gentileza humana que o cinema foi capaz de nos dar. O nosso melhor lado, a parte bon­dosa do nosso ape­tite sexual, a galan­te­ria, uma certa gra­ci­o­si­dade iró­nica da espécie que somos, estão espelhadas, nos movimentos do corpo apaixonado de Kelly a dançar à chuva, na forma como ele se casa com o cenário e com os movimentos de grua da câmara. 

Seria aliás uma cobardia, não dizer o essencial: o corpo de bailarino, o corpo de Gene Kelly não se limita a executar, o corpo exprime. Há linguagem no corpo de Kelly, as pernas dele pensam, os pés conceptualizam. (As pernas e os pés de Pedro e Luís também?) Muita treta se disse da falta de corpo na arte do Ocidente e do reprimido corpo judaico-cristão. Ora o corpo está nesta cena, o corpo ágil de um homem, e é um corpo patente, potente e contente. Vemo-lo exuberante, sem sombra de repressão ou depressão.

Eu acredito que há extraterrestres e que um dia hão-de invadir isto tudo. Nesse dia – e espero que sejam Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos a recebê-los num “pas de deux” –, devemos pô-los a ver Gene Kelly a dançar à chuva. Ao vê-lo, os extraterrestres olharão para nós com misericórdia e simpatia, por descobrirem que, quando cantamos, quando dançamos, somos gentis, amáveis, escapistas, optimistas e infinitamente generosos. Seja Gene Kelly o nosso embaixador. Cyd Charisse ao seu lado, está claro.

Publicado no Weekend, o suplemento de 6.ª feira do Jornal de Negócios

O incheirável pum!

Na crónica da semana passada, este escalavrado autor e as minhas leitoras e leitores, comungámos o fascínio pela torneada perfeição que eram as nádegas de Brigitte Bardot em “O Desprezo”, essa obra-prima de Godard. Eram lindas – vermelhas, azuis e amarelas conforme os filtros com que Godard as filmou, em três minutos gourmet.

Passar das nádegas da então juvenilíssima Bardot às cansadas nádegas de um velho actor de Ingmar Bergman é uma associação livre impertinente ou, para usar linguagem cinematográfica, um “raccord” que se arrisca a azucrinar mesmo o mais terno dos espectadores

E, não obstante, essas nádegas, de que vos quero falar, também existem, não só porque os velhos têm nádegas, mas também porque esse assombroso filme chamado “Fanny e Alexandre”, inarredável mergulho de Ingmar Bergman na sua infância, tem nas nádegas de um velho actor um momento de soprada transcendência.

Perguntar-me-ão, mas que raio de transcendência haverá numas nádegas cansadas e descaídas, esse incheirável monumento de decadência e declínio que o bom gosto omite e a boa moral camufla?

Ora, e se me perdoam a digressão teórica, sempre defenderei que as grandes narrativas, os mais arrebatados impulsos estéticos são muitas vezes os que não parecem ter significado nenhum, tão ausentes julgamos estarem de pregnância artística.

E quero então mostrar-vos esse velho actor bergmaniano a começar a baixar as calças. Tudo se passa em Uppasala, na Suécia, nos anos dez do século XX, na infância estremecida, gloriosa, de Ingrid Bergman, cheia de medos polvilhados com o branco açúcar da alegria.

Estamos na mais calorosa ceia de Natal. Uma gigantesca família – são 20 ou 30, já não me lembro – partilha a mais voluptuosa refeição, as carnes, os molhos, os vinhos, os doces. Dança-se nos salões da riquíssima mansão, um dos lascivos patrões arrasta uma criada afogueada para um canto, beija-a, e ela a ele, a mão masculina já deambulatória pela fresca nádega – e ainda não é essa a nádega protagonista desta minha crónica.

Vejam, o velho tio arrastou os miúdos da casa para a escadaria interior. Em segredo, e que miúdo não se desalma por um bom segredo! Um deles é o menino Bergman, mas há mais três, e cito de cor, meninas e meninos. O velho tio pergunta, com ar melífluo e sussurrando, se querem ver trovoada e fogo de artifício. Os rostos das duas meninas e dois meninos, lábios húmidos, abrem-se em flor: querem. O tio tira os sapatos, despe as calças, por baixo as ceroulas suecas que vão até aos tornozelos. Sobe e desce as escadas para ganhar gás e começa o foguetório. O primeiro traque é uma explosão. Já a segunda ventosidade é quase uma sonora abertura musical. Na cara dos miúdos há uma elevação sublime, também o prazer do pequenino pecado que é a participação numa cerimónia secreta. Já a libidinosa cara do tio se contorce a preparar o “gran finale”. Pede a um miúdo (é Bergman, só pode) que segure no castiçal de três velas, sobe e desce cinco degraus e, de traseiro exposto, dispara o último e farto flato que apaga numa só rajada as três velas.

Para minha desgraça pessoal aqui estou eu, a escrever-vos para defender o eufórico valor artístico do traque.  Contamos histórias porque queremos ouvir o traque, o sonoro flato, a ventosidade que faz bruxulear a luz de uma vela. As histórias são os traques que ressuscitam e fazem rir o menino que os trabalhos e os dias adormeceram em nós.

Peço-vos uma coisa. Subam e desçam as escadas a correr, baixem as calças, levantem as saias e, como o tio de Bergman, façam o têm a fazer.

Publicado no Weekend, o suplemento de 6.ª feira do Jornal de Negócios

Está deitada e nua

Levantei-me agora da cama – sesta das três da tarde de fim de semana – e, se me deitara a não pensar em coisa nenhuma, levantei-me a pensar na nudez. Já de pé, saiu-me esta conclusão tão trivial como todas as que nascem de uma sesta de fim de semana: há uma dissimulada diferença entre a nudez americana e a nudez europeia.

Lembro-me, em Los Angeles, eram 10 da noite, ou talvez fossem já umas tardias 11, estávamos todos vestidos, numa bebida pós-prandial, a música techno a acariciar a azulíssima piscina do Chateau Marmont, e uma mulher deixou cair o alvo roupão aos pés. Estava nua, mergulhou na transparência azul, e a sua nudez nadou uns bons inefáveis minutos. Mulheres e homens à volta tragaram o seu espanto com a displicência de quem bebe a última gota de uísque. A mulher nua saiu das venusianas águas, logo coberta pelo roupão. Não houve um ah! de espanto aos seus seios e delicada púbis, nem um sentido aplauso à nudez asséptica da jovem mulher americana.

Venham agora comigo ao cinema. A um filme do mais “bad boy” que o cinema francês já teve, Jean-Luc Godard. Fez um filme, “O Desprezo” com um produtor americano, o filme em que esteve mais perto dessa indústria, que ele tanto admirou e tanto odiou.  A vedeta feminina de “O Desprezo” é Brigitte Bardot, traço de união dos europeus como nunca mais houve. Filmaram e Joseph E. Levine, o pro­du­tor, ao ver a versão final, sem um nu pelo menos de Bardot, atirou-se a Godard. “Não há nus, não há filme nos cinemas!” jurou. Godard resignou-se e filmou Bardot nua juntando tudo numa só sequência, de mais de três minutos, a abrir o filme.

Por favor, vejam: é uma sequência gloriosa. Num quarto de sombras, cruzado por uma réstia de luz e filtros a roçar uma certa decadência, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão convincentes nádegas: ela mesma diz ao actor com quem contracena, numa pergunta que é também para cada espectador que esteja na sala: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”

Será preciso responder? Bar­dot está nua, deitada de costas, na cama. O actor, Michel Pic­coli, veste uma amarrotada t-shirt branca e contempla-a. Pala­vra a palavra, pela boca de Bar­dot, com o com­pla­cente acordo de Piccoli, é-nos dito cada cen­tí­me­tro do corpo dela. Ouvi­mos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Nunca se tinha “ouvido” um corpo como nesse filme se “ouve” o corpo de Bardot. Ouvimos os torno­ze­los, as coxas, o rabo, os seios, os joe­lhos. Ouvi­mos o corpo de Bardot como se ouvís­se­mos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros ver­me­lhos e azuis uti­li­za­dos por Godard mais refor­çam.

Ainda temos os ouvi­dos nas redon­das e tão belas nádegas e já Bar­dot nos per­gunta “o que pre­fe­res, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabe­mos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Georges Dele­rue, a responder-lhe com mais certeza do que Piccoli. E quando ela diz “amas-me?”, ouvimos um atarantado Piccoli, a cujo abraço o sinuoso corpo se escapa, responder: “Amo-te totalmente, ternamente, tragicamente!”

Ouvimos e ouvindo entra-nos pelos olhos uma nova forma de erotismo. Este já não é o erotismo voyeur das pernas de Marilyn que o sopro do metro de Nova Iorque expõe, levantando-lhe o vestido, em “O Pecado Mora ao Lado”. A nua Bardot é de um erotismo que sabe de si mesmo, um erotismo de cama e sem inocência: a cama em que desagua a dúvida, a crescente perplexidade masculina europeia. Uma profunda fenda filosófica separa a alacridade das pernas de Marilyn das nádegas de Brigitte Bardot.

Publicado no Weekend, do Jornal de Negócios