
Cada um tem os seus mortos que não morrem. O meu pai, o Artur, faz-me, hoje, dia 15 de Agosto, 102 anos. Mentirão se disserem que morreu há quase 30! O Artur continua a aparecer-me: só um sussurro, às vezes; ou um riso atrás de mim e quando me viro, já se foi embora; ou três límpidas aparições nessa azinheira que é o nosso intranscendente desejo de transcendência e só uma em que vinha de cara triste, barba de dois dias.
À medida que envelhecia ia ficando cada vez mais parecido com Mário Soares, as mesmas bochechas, as mesmas rugas nos olhos. O meu pai nunca foi, nem nunca lhe passou pela cabeça que pudesse ser figura pública. Quarta classe tirada na escola da aldeia, mãos de fazer tudo, mesmo tocar bandolim, o meu pai sabia imensas coisas – que eu nunca saberei –, podar árvores, fazer uma cadeira, plantar batatas, pôr tijolos e levantar uma parede, vindimar, criar patos, gansos e coelhos e curá-los quando estavam doentes, tocar, como Bob Dylan, harmónica. Sabia dançar e perdoar. Sabia o nome das árvores, o nome de quase todos os pássaros, não sabia era o nome dos peixes, ele que tão pessimamente pescava, ignorância de rodapé que me deixou de herança. Sabia dizer-me que sim!
Coisa estranha: queria ser independente. Nasceu numa aldeia da Beira Alta, era proficiente, alegre, quase um artista; podia ser ali um pequeno rei e não lhe bastava a aldeia, o casarão da mãe, duas vinhas e um olival de que era dono. O meu pai não era dos que sempre ficaram. O meu pai era e foi português de se ir embora. Levou-me com ele, à Alice, minha mãe, e à minha irmã, para uma África desconhecida. Ingénuo e idealista, à apolítica maneira dele, vendeu tudo no Portugal da minha avô, as vinhas e os olivais, para comprar uma pequena casa, no fim do asfalto, em Luanda, um musseque em frente. E era em Angola que sonhava morrer, de tanto ter sido ali feliz. Colonialismo? Sabia lá ele que palavrão era esse, ou que colonialismo e anticolonialismo fossem faces eternas da mesma moeda.
Um dia o meu pai descobriu que tinha de voltar. Retornar. Uma mão à frente, outra atrás, um frigorífico, uma moto, camisas de manga curta e um black and decker em três caixotes num barco. Meteu a família, a Alice, filha e neta, num dos aviões que a caridade social-democracia sueca dispôs. Menos eu, então independentista convicto: o abraço que demos, perto da Mutamba, antes de ele e o meu cunhado irem apanhar o derradeiro avião.
E agora me lembro que o meu pai me disse, por outras palavras, a mesma frase que tanto se citou no dia em que Mário Soares morreu, que não era homem de desistir. Aos 52 anos, do nada, de um subsídio do IARN e de uma casa senhorial, tão bonita e abandonada, sem água nem luz, à saída de Pinhel, que sem um centavo de pagamento lhe cedeu o generoso Manuel Vilhena, deputado da ASDI, semi-partido entalado entre o PSD e o PS, o meu pai, obrigado a ser de novo o agricultor que não queria ser, refez, tijolo a tijolo, vindima a vindima, a sua vida. Com estoicismo, por amor à Alice, minha mãe: tantas vezes os vi sentados, mão na mão, entre as árvores, aos pés os lírios do campo.
O Artur faria agora 102 anos. Gostava de ter na mão o meu primeiro brinquedo, um carrinho de madeira que ele mesmo me fez, na casa de cimento incrustada no musseque Sambizanga. Era ainda tão novo, segurava-me a mão e um calor grande, lareira no meu peito, fazia-me dizer baixinho: “Este é o meu pai!” Há por aí quem diga e até escreva que Deus fez o Homem à sua imagem e semelhança: quando penso no meu pai, chego a acreditar que sim.
Publicado no Jornal de Negócios
Caro ManelEncontro-me neste momento
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Belíssimo texto. Bem lá do fundo!
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É com agrado ver que o velho Freud continua a velar sobre os espíritos.
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