Um penico de seda

O comando nazi e soviético assistindo à parada militar conjunta, na Polónia ocupada.

Qual flic-flac, eu chamava-lhe era um duplo twist carpado se não fosse altura de deixarmos a celestial Simone Biles em paz. Ora do que eu quero falar é de como, a pretexto de se fazer a paz, se abrem as terríveis goelas da guerra.

Foi um flic-flac anunciado no dia 23 de Agosto de 1939. Hitler e Estaline assinaram um pacto de não agressão. E fizeram-no como se fossem dois anjos da paz. Diabos seriam as democracias europeias, sobretudo essas Inglaterra e França cuja voragem capitalista estaria a empurrar a Europa para a guerra. Putin repete hoje, à sua maneira farsante, o mesmo teatro.

E agora vejam, mesmo um surrealista como Louis Aragon, renegando a pérola ficcional a que deu o sonoro título de “A Cona de Irene”, tendo passado a dormir nos lençóis vermelhos do Partido Comunista Francês, veio pôr a prosa ao serviço da inefável pomba da paz que saltitava do ombrinho de Hitler para a cabecita de Estaline. Aragon fez o flic dizendo que o pacto era “um triunfo da vontade de paz soviética” e logo o flac, em cima de Hitler, jurando que “quando um agressor profissional assina um pacto de não-agressão é para ele que isso é embaraçoso”.

Ora o Pacto nazi-soviético não era só o Pacto. A par do angélico anúncio ao mundo, Hitler e Estaline assinaram um documento secreto. Como Napoleão disse um dia, definindo o seu ministro Talleyrand, o Pacto era “muita merda num penico de seda”. O que Hitler e Estaline esconderam no penico de seda foi o acordo para invadir e repartir a Polónia: um acordo de crime e sangue. E acordaram lançar as garras, os nazis para ocidente, os comunistas para meia Polónia, a Finlândia e os estados bálticos.

Durante dois anos, Hitler teve as costas quentes. Teria feito a guerra, sem o Pacto? Talvez sim, nunca com o mesmo conforto. O Pacto foi o suplemento energético para o desejo de guerra e conquista dos nazis. E a ideia de que Estaline o assinou para reforçar as suas forças armadas, esse consolo pragmático com que a posteriori tanta intelectualidade lambeu a escandalosa ferida, não colhe. O expansionismo de Estaline era real: pô-lo em marcha ainda a tinta das assinaturas no Pacto estava fresca; prosseguiu-o, nas barbas dos aliados americanos e ingleses, capturando todo o Leste europeu, só lhe fugindo pelos dedos a Finlândia e a total conquista de Berlim, que a URSS cercaria depois com um muro a que Trump, fosse ele um tipo honesto, teria de pagar direitos de autor.

O namoro de Estaline a Hitler para a criação do penico de seda já levava, antes de 1939, três anos. Na Polónia ocupada, as tropas nazis e soviéticas fizeram um desfile, lado a lado, em Brest. E venham, por favor, a Moscovo e a São Petersburgo. Partilhada a Polónia, vejam a pompa gourmet do banquete de 24 pratos  com que a delegação nazi é recebida para firmar o Tratado de Fronteira e Amizade Nazi-Soviético. A URSS fará até trabalho sujo ao serviço dos nazis: recebe listas de cidadãos alemães, austríacos e checos fugidos a Hitler, prende-os e devolve-os à morte.

Desata também aos beijos culturais na boca nazi. Os jornais deixam de criticar os nazis, literatura antifascista é retirada das livrarias, dois filmes soviéticos que mostravam perseguições nazis aos judeus são interditos, bem como o “Alexandre Nevsky”, filme de Eisenstein, cujo herói russo derrotava os cavaleiros teutónicos. Eisenstein é compensado: encena, no Bolshoi, “As Valquírias”, de Richard Wagner, o compositor favorito de Hitler, que o Pravda saúda como um génio.

Sim, milhões de heróicos russos morreriam depois para apagar Hitler do mapa. Teria sido necessário esse dantesco sacrifício humano, se Estaline não tivesse, há 85 anos, respaldado Hitler?

Publicado no Weekend do Jornal de Negócios. Estou lá, todas as sextas-feiras

Quem tem medo da bigamia?

retratado pela New Yorker (num grande artigo, diga-se)

O que fazer se não aplaudirmos a bela vida do grande intelectual que foi Paul de Man? Mas vejam, a vida de Paul mudou muito depois da sua morte. Vivo, Paul, belga emigrado para os Estados Unidos, revolucionou os estudos literários pontificando nas universidades de Harvard, Cornell e Yale, o equivalente a Ronaldo jogar no Manchester United e no Real Madrid.

Morreu. Já há quatro anos que Paul de Man descansava em paz, quando lhe tiraram o esqueleto do féretro e os ossos dele passaram a andar de boca em boca. Primeiro, destaparam-lhe o lençol nazi e anti-semita. Afinal Paul, durante a ocupação nazi da Bélgica, não só não fora um resistente, do que na seu curriculo se louvava, como escrevera artigos na Imprensa nazi, com rasteiros ataques aos judeus.

Quem o conheceu jura que ele tinha o charme de uma flute de champanhe, esfusiante e aromático. Foi assim que a progressiva escritora nova-iorquina Mary McCarthy soçobrou, e o marido dela consentiu, sendo esse ménage à trois – delícia civilizacional para um casal americano ter à perna um europeu – o passaporte de Paul para a glória americana. Mary arranjou-lhe um lugar de professor em Bard, mas quando veio visitá-lo, descobriu-o a viver com Patricia, uma estudante. Mary rejeitou-o, mas honra lhe seja, o amor de Paul por Patricia tinha a autenticidade da mais terna cereja do Fundão. Havia um detalhe, pequenino, coisinha para caber entre o polegar e o indicador: Paul era casado e tinha três filhos. Incapaz de os sustentar mandara o lote familiar para a Argentina onde viviam os seus pais, emigrantes. E foi esse embrulho familiar, mulher e três filhos, que Patricia, já bem grávida, viu quando, ao ouvir a campainha, abriu a porta de casa.

Paul habituara-se a saltar barreiras e a bigamia não o intimidou: ousou casar com Patricia. Trafulhice, talvez, mas o casamento foi, diga-se, feliz, fiel, farto, formoso e não sei como continuar a aliterar para louvar o genesíaco paraíso em que Paul e Patricia se banharam.

Paul, porém, era mesmo trafulha. Sabe-o, com inveja, o editor que eu sou: na Bélgica, também Paul quisera ser editor. Arrebanhou, de amigos e nem tanto, o necessário capital: em dois anos publicou um, só um livrinho, locupletando-se com o apetecível capital. Acusado, fugiu para a salvadora América.

Era, portanto, um condenado na Bélgica in absentia a seis anos de prisão que encantava os alunos de Bard. Como encantaria, depois, os alunos de Harvard, da John Hopkins, de Cornell e Yale, esse Olimpo da academia americana. Para isso, falsificara as credenciais: é certo que estudara em Lovaina dois anos, mas a universidade, em protesto contra a ocupação nazi, fechara. Só que no relatório enviado por Lovaina, escrito em “academês”, Paul falsificara, se assim se pode dizer, uma nota manuscrita: “Aprovado no Exame perante o Júri de Estado em 1942”. Era o equivalente a um Mestrado de Artes. Começava assim a carreira académica que introduziria na América o desconstrucionismo de Derrida e toda a panóplia de Barthes e Lyotard. Sim, com competência, tanta que o famoso Derrida, convidado a palestrar, e Paul de Man se tornaram amigos. Um editor que se regala com o dinheiro dos outros, ménage à trois, bigamia, empolgante com os alunos: caramba, é difícil um coração não se derreter com tamanho encanto. “Os princípios morais são o que, nos idiotas, substitui a inteligência”, terá dito um dia Paul, já depois de ver o irmão morrer, a bicicleta trucidada por um comboio, e depois de, aos 16 anos, ter descoberto e recolhido nos seus braços a mãe enforcada. Quem o quer julgar?

Publicado no Weekend, suplemento de 6.ª feira do Jornal de Negócios

O medo de ficarmos sem língua

o banho

O medo é uma das grandes paixões da humanidade. Sem lobos maus, sem bruxas feias, perversas e iníquas, as histórias que os pais nos leram na nossa infância e que também nós lemos aos nossos filhos, não valiam um caracol. O cinema apaixonou-se pelo medo desde o início. É verdade que o cinema também se apaixonou pelo amor, mas a paixão pelo medo provocou bem mais gemidos e gritos, bem mais sobressaltos do que o esfusiante estica e encolhe do amor.

É com todos os requintes do medo que os grandes realizadores conseguem que o espectador mexa o rabo na cadeira, prova de que a expressão “quem tem cu, tem medo”, tem o realíssimo significado de um buraquinho em que não cabe nem um feijão.

Nenhum realizador viveu tanto como Alfred Hitchcock do sofisticado beijo na boca à boca do medo. Saíram da cabeça dele as melhores cenas de suspense e medo que os nossos olhinhos já comeram. Escolho uma, do filme “Psycho”, em que, com uma faca e uma cortina de duche, Hitchcock redefiniu o terror.

“Psycho” baseia-se na história real de um criminoso, que não matou nenhuma das víti­mas no banho, limitando-se a cortar-lhes a cabeça. Mas, como todos sabemos, a realidade é pobre e uma girândola de mortes e cabeças cortadas eram soluções que desagra­da­vam a Hit­ch­cock. Não gos­tava de muitas mor­tes nos fil­mes – “os cadá­ve­res não sabem representar”, explicou ele, achando que era um desperdí­cio e uma san­gria desa­tada cortar-se sim­ples­mente a cabeça à vítima.

O plá­cido cine­asta inglês tinha inveja do que os realizadores do cinema mudo tinham feito, nos anos 10 e 20 do século XX, às suas actri­zes. Nessa altura, jurava o velho Hitch, os realizadores sabiam tor­tu­rar uma mulher e “faziam aquilo bem feito”. Ins­pi­rado nessa tradição, nasceu na cabeça de Hit­ch­cock a bela e cri­mi­nosa ideia de matar no banho a sua pro­ta­go­nista, Janet Leigh, aos 47 minu­tos de filme.

A personagem de Janet Leigh está em fuga. Conluiou-se com o amante e roubou uma pipa de massa ao seu patrão. Uma coisinha de nada, que mereceria hoje uma gritada comissão de inquérito na Assembleia da República. Janet mete-se à estrada e pára num daqueles mágicos motéis americanos no meio de nenhures. Está mesmo a precisar de um duche e nós de a vermos despir-se.

E eis que o velho realizador inglês a mata. Três minutos de chuveiro e umas 50 facadas são a matéria-prima dessa cena sublime de Hitchcock. É um prodígio de montagem, uma combinação fabulosa de música, grandes planos, água, chuveiro, cortina de plástico e reacções humanas. Se virmos bem são ingredientes humildes, prosaicos, sem valor estético, mas a combinação é artisticamente sublime, num preto e branco que era, em 1960, já anacrónico e raro.

O pai de uma jovem espectadora escreveu a Hitchcock a acusá-lo e a ameaçar meter-lhe um processo. Era uma desses pais “woke”, mesmo antes dos “woke” existirem. Vinha choramingar-se, dizendo que a filha, depois de ter visto o filme, se recusava há meses a entrar no duche. O velho e gordo cineasta respondeu ao papá em apuros, escrevendo: “Mande-a à limpeza a seco.”

Estamos num motel, Janet Leigh vai ao duche e, naqueles anos 60 em que a nudez era rara e castigada, queríamos vê-la despir-se. O milagre é que a tensão erótica não só não desaparece como entra em hiperventilação quando um indecifrável vulto irrompe no duche e a implacável faca, como uma águia predadora, pica sobre o corpo nu de Janet Leigh. A boca do medo oferece-se e nós, como espectadores, deleitamo-nos a beijá-la. Sem o medo de ficarmos sem língua queríamos lá saber do “french kissing”!

Publicado no Jornal de Negócios

Poder, Solidão, Amargura

Salazar é, mãos dadas com Cunhal e Mário Soares, uma das figuras do século XX português que mais me fascina. Toda a minha infância, adolescência, começo da idade adulta foi marcada, nos meus anseios, na minha educação, na escassa economia familiar dos meus pais, pela acção política de Salazar. Salazar entrou na minha vida, como na vida de milhões de portugueses, sem pedir licença. Ao longo de quase cinco décadas, de 1928 a 1970, Salazar exerceu um poder autocrático que influenciou os costumes, o bem-estar, o pensamento, as liberdades, ou seja, a vida de cada um dos portugueses, mesmo dos que se exilaram ou emigraram.

Hoje, longe de fervores hagiográficos ou coléricos (é que já não há pachorra, nem para os que pedem cinco Salazares nem para os que vêem nele o diabo), podemos e devemos tentar compreender o que motivava esse ditador singular, que os militares da revolução de 28 de Maio chamaram duas vezes para exercer o poder, o que o atormentava, o que ardia no intelecto de gelo, que ele mesmo dizia ser o seu.

Com este livro, Salazar, as Citações: Poder Solidão, Amargura, o que eu quis foi permitir a cada um dos leitores compreender Salazar através das suas próprias palavras. São cinco décadas de confissões, de exaltados discursos, de sonhos patrióticos, de queixas impotentes, de agudas visões geo-estratégicas, de desabrido anti-comunismo e anti-americanismo, de muita frieza afectiva.

Sem prescindir da minha própria visão, este é um livro que permite a cada leitor construir a sua própria imagem de Salazar, poder enfim, discutir com ele, criticá-lo, apontar-lhe as contradições e acertos. Por ordem cronológica, devidamente contextualizado, eis o livro em que Salazar fala e faz, ele mesmo, de forma surpreendente, o balanço dos seus 40 anos de poder.

Salazar, as Citações: Poder Solidão, Amargura está já em pré-venda aqui. Chega às livrarias portuguesas no dia 24 de Setembro.

Os meus livros de Setembro

De onde vem o sal que ainda trago colado ao corpo? Das férias ou restos do velho Império? Esta é, cheia de feridas tratadas a sal, a newsletter da nossa rentrée. Boa leitura.

Que terra assombra de amor-ódio-culpa o imaginário do século XXI português? De onde vêm essas ondas de dor, de nostalgia, de sopro heróico e arrepio pusilânime, que se nos cravam no estômago e baixo-ventre? Dois belíssimos e chocantes romances – sim, romances de amor-ódio-culpa – respondem, e começam aqui os meus livros de Setembro: O Elogio da Dureza, romance cru, rijo como rocha, poético e intempestivo como Rimbaud, da autoria de Rui de Azevedo Teixeira, e Sublevações, romance de seis dilacerados e raivosos monólogos-trovão, de Filipe Súcia Fernandes, assustaram-me e comoveram-me: são trovões que vêm de Angola, com cenas de fúria que se nos espetam como punhais na nossa carne inocente e no raio dos nossos pecados. São muito boa literatura. Vêm das entranhas, não são para meninos ou meninas, são para mulheres e homens bravos, romances que fazem mais forte a forte gente. Repito: Elogio da Dureza, de Rui de Azevedo Teixeira e Sublevações, de Filipe Súcia Fernandes, dois romances diferentes, vestem-nos e despem-nos com fervor e furor, instinto assassino, o nosso incendiado passado colonial, a perplexidade e a amargura da derrota, da expulsão, um lençol de sexo e amor também. São feridas novíssimas e indeléveis abertas na literatura portuguesa. A ler já.

Literatura hoje consagrada é Os Grão-Capitães, de Jorge de Sena, que vem reforçar as Nova Edições de Jorge Sena, que Isabel de Sena me tem ajudado a fazer. Lê-lo ao mesmo tempo que se lêem os romances do parágrafo anterior mostra-nos o quanto Sena antecipou e percebeu das nossas angústias nacionais: Sena sabia já porque é que Capangala não responde. A melhor ficção portuguesa!

E vou parar aqui para deixar José Jorge Letria cantar: em Abril Também se Fez a Cantar, Letria conta-nos mais de 20 episódios do que foi, antes do 25 de Abril e depois, a emergência e a urgência das canções de intervenção e dos cantautores: estão lá todos e, claro, dorme meu menino, José Afonso, estrela d’alva, brilha.  

A um sono profundo decidi arrancar Salazar. Decidi que devia ser Salazar a falar de si mesmo. Salazar, as Citações: Poder, Solidão, Amargura é o livro que dá a palavra ao ditador de meio século. Reuni o que disse Salazar, pus tudo por ordem cronológica e enquadrei, moi-même, Manuel S. Fonseca, as situações que o levaram a dizer o que disse. Deixar falar Salazar diz-nos mais sobre ele do que mil opiniões (de devotos ou de quem o abjure) : descubram-lhe ambições de juventude, o que pensava mesmo sobre os portugueses; descubram-lhe a inteligência financeira, o diplomata, o geo-estratega; descubram-lhe a insensibilidade que roçava a crueldade; entrem com ele, no fim, no quarto escuro da desilusão e do ressentimento. Lê-se como um romance: «Hão-de falar muito mal de mim» pressentiu ele.

Teria Salazar um pé no mal? Sobre o Bem escreveu Iris Murdoch. O seu A Soberania do Bem é um dos grandes livros de filosofia do século XX. Denso, desafiador, explica-nos por que razão o Bem não é uma escolha: o Bem é objectivo, o Bem existe, e é esse o eixo da ética de Murdoch, essa belíssima romancista irlandesa, que era também filósofa: um livro exigente, dos mais bonitos que já publiquei na colecção Os Livros Não se Rendem, de que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações são parceiros generosos.

E vejamos, há um romancista novinho em folha a chegar a Portugal. Chama-se Pedro Gunnlaugur Garcia e é luso-islandês. O seu romance, Pulmões – exige fôlego, sim – venceu o Prémio Nacional de Literatura da Islândia. Comparado a Günther Grass e Gabriel Garcia Marquez, chega a Portugal, ao mesmo tempo que é publicado na França, Alemanha, Espanha, Brasil e México. A tradução é do Ivan Figueiras.

Outra surpresa é O Tribunal das Almas, romance de Fernando Paulouro das Neves, a começar pela personagem principal: eis que um remoto parente de Fernando Pessoa, Martinho Pessoa, é perseguido pela Inquisição e levado à fogueira no teatro divino do Santo Ofício. «Nesta condição em que estou, ainda sou um homem?» é a pergunta desse surpreendente, e em desoladoras chamas, Pessoa antes de Pessoa.

E antes de me deixar deslizar para as mais doces chamas do ócio, deixem que vos fale das duas chancelas, Crisântemo e Euforia, com que a Rita Fonseca quer descobrir outros caminhos marítimos para a Guerra e Paz.

Na Crisântemo, há um livro de estreia: Atenção na Era da Distracção, de Ana Vargas Santos. A autora é especializada em Psicologia Organizacional e escreveu um livro prático, seguro e utilíssimo com 18 ideias chave para ajudar o nosso corpo e o nosso cérebro a manterem-se «ligados»: afinal, a nossa vida depende da forma como agarramos e usamos a atenção no polvilhado mundo que nos cerca.

Na Euforia, chega um novo romance da saga do rancho Rebel Blue. Depois de Feita e Desfeita, a autora, Lyla Sage, oferece-nos A Lua e a Maré. Nos Estados Unidos é já um «national bestseller», um popularíssimo «best  book of 2024 so far», revelando a magia e a emoção do regresso a um mundo de natureza, cow-boys e cavalos, o mundo do rancho: mas será assim um mundo tão simples e «natural»? Quando se cavalgam sonhos para onde podemos ser arrastados: para tensões dolorosas ou para o mais transbordante dos romantismos? Descubram.

Manuel S. Fonseca, editor

Os mortos que nunca nos morrem

Cada um tem os seus mortos que não morrem. O meu pai, o Artur, faz-me, hoje, dia 15 de Agosto, 102 anos. Mentirão se disserem que morreu há quase 30! O Artur continua a aparecer-me: só um sussurro, às vezes; ou um riso atrás de mim e quando me viro, já se foi embora; ou três límpidas aparições nessa azinheira que é o nosso intranscendente desejo de transcendência e só uma em que vinha de cara triste, barba de dois dias.

À medida que envelhecia ia ficando cada vez mais parecido com Mário Soares, as mesmas bochechas, as mesmas rugas nos olhos. O meu pai nunca foi, nem nunca lhe passou pela cabeça que pudesse ser figura pública. Quarta classe tirada na escola da aldeia, mãos de fazer tudo, mesmo tocar bandolim, o meu pai sabia imensas coisas – que eu nunca saberei –, podar árvores, fazer uma cadeira, plantar batatas, pôr tijolos e levantar uma parede, vindimar, criar patos, gansos e coelhos e curá-los quando estavam doentes, tocar, como Bob Dylan, harmónica. Sabia dançar e perdoar. Sabia o nome das árvores, o nome de quase todos os pássaros, não sabia era o nome dos peixes, ele que tão pessimamente pescava, ignorância de rodapé que me deixou de herança. Sabia dizer-me que sim!

Coisa estranha: queria ser independente. Nasceu numa aldeia da Beira Alta, era proficiente, alegre, quase um artista; podia ser ali um pequeno rei e não lhe bastava a aldeia, o casarão da mãe, duas vinhas e um olival de que era dono. O meu pai não era dos que sempre ficaram. O meu pai era e foi português de se ir embora. Levou-me com ele, à Alice, minha mãe, e à minha irmã, para uma África desconhecida. Ingénuo e idealista, à apolítica maneira dele, vendeu tudo no Portugal da minha avô, as vinhas e os olivais, para comprar uma pequena casa, no fim do asfalto, em Luanda, um musseque em frente. E era em Angola que sonhava morrer, de tanto ter sido ali feliz. Colonialismo? Sabia lá ele que palavrão era esse, ou que colonialismo e anticolonialismo fossem faces eternas da mesma moeda.

Um dia o meu pai descobriu que tinha de voltar. Retornar. Uma mão à frente, outra atrás, um frigorífico, uma moto, camisas de manga curta e um black and decker em três caixotes num barco. Meteu a família, a Alice, filha e neta, num dos aviões que a caridade social-democracia sueca dispôs. Menos eu, então independentista convicto: o abraço que demos, perto da Mutamba, antes de ele e o meu cunhado irem apanhar o derradeiro avião.

E agora me lembro que o meu pai me disse, por outras palavras, a mesma frase que tanto se citou no dia em que Mário Soares morreu, que não era homem de desistir. Aos 52 anos, do nada, de um subsídio do IARN e de uma casa senhorial, tão bonita e abandonada, sem água nem luz, à saída de Pinhel, que sem um centavo de pagamento lhe cedeu o generoso Manuel Vilhena, deputado da ASDI, semi-partido entalado entre o PSD e o PS, o meu pai, obrigado a ser de novo o agricultor que não queria ser, refez, tijolo a tijolo, vindima a vindima, a sua vida. Com estoicismo, por amor à Alice, minha mãe: tantas vezes os vi sentados, mão na mão, entre as árvores, aos pés os lírios do campo.

O Artur faria agora 102 anos. Gostava de ter na mão o meu primeiro brinquedo, um carrinho de madeira que ele mesmo me fez, na casa de cimento incrustada no musseque Sambizanga. Era ainda tão novo, segurava-me a mão e um calor grande, lareira no meu peito, fazia-me dizer baixinho: “Este é o meu pai!” Há por aí quem diga e até escreva que Deus fez o Homem à sua imagem e semelhança: quando penso no meu pai, chego a acreditar que sim.

Publicado no Jornal de Negócios