
Tenho um medo dos actores que me pelo. Lembro-me do senhor Adolfo Gutkin me ter mandado subir ao palco do teatro da Trindade, para me juntar aos exercícios de aquecimento a que esses espectros, a que chamam actores, se dedicavam.
Os exercícios de aquecimento de um actor são diferentes dos de um jogador de futebol. O corpo do actor contorce-se como se fosse uma silhueta de Goya, a voz estridula, enrouquece, balbucia com o desespero e angústia do animal selvagem ferido e acossado.
Apanhei o maior susto da vida, as pernas a abanarem como bandeira negra no meio da revolução. Trabalhava então no Teatro do Mundo na pesquisa de texto: só queria escrever sossegadinho, imóvel e invisível nos bastidores, e o raio do encenador argentino, vindo de Cuba, atira com o meu inexprimível eu para cima de um palco, sem rede.
Nos cinco minutos em que ali estive, perplexo e aterrado, soube que o palco é só para heróis, para os estranhíssimos seres humanos a que damos o substantivo nome de actores, esses mesmo
Um dia – se esticasse um braço podia tocar-lhe –, vi Peter O’Toole no palco, camisa aberta, a gravata quase desarmada, uma ressaca de caixão à cova, o catarro, esse homérico refluxo que um cigarro acalmava, enquanto não conseguia descobrir a bebida, o gin, que lhe limpava o apertado estreito. E era só um actor, era Peter O’Toole a fingir que era Jeffrey Bernard, o jornalista herói (ou anti-herói) da peça “Jeffrey Bernard is Unwell”, que é como quem diz “Jeffrey Bernard não está nada bem”.
Estava ali, à distância de um braço, o bafo do gin no ar, e eu não sabia se era Peter O’Toole se era a personagem Jeffrey Bernard: e o que é assustador (e miraculoso) é essa fusão! Mas qual? A da personagem no actor ou a do actor na personagem? Rendo-me quando não distingo, quando vêm os dois em um: vejo John Wayne no Ethan Edwards do filme “A desaparecida”, de John Ford, e vejo que Ethan Edwards é, inteiro, o corpo, mas também a moral de John Wayne.
Quando penso no ofício do actor volta-me o medo das duas da tarde, no Teatro da Trindade com o Senhor Gutkin. Mais depressa andaria numa montanha-russa no escuro do que quereria fazer a assombrada visita ao interior de um actor.
A questão é mesmo essa: será que se pode ver um actor por dentro? Como se faz? Sobe-se uma escada, abre-se-lhe a boca e olha-se para o escuro que está lá dentro? Quantas mulheres e quantos homens é que estão no quarto escuro, sem janelas, da Greta Garbo? Seria por isso, por estar tão acompanhada, que ela dizia, num filme, o “Grand Hotel”, que queria ficar sozinha, aquele seu célebre “i want to be alone, i just want to be alone”?
Dizem que há uma oficina em que os actores aprendem. Nessa oficina o actor descobre a maneira do corpo pensar por si próprio, acabando na aparência com a tirania da mente.
Será? Ouvi Charles Laughton, sofisticadíssimo actor inglês, contar outra história. Laughton terá dito do americano e ingénuo Gary Cooper o seguinte: “Vi logo que ele tinha qualquer coisa que eu nunca teria. Aquele rapaz não tinha a mais pequena ideia de como representava bem.”
Charles Laughton, que quando abria a boca se lhe via uma oficina inteira por ali abaixo, percebeu bem: aquele rapaz, Gary Cooper, mexia-se instintivamente como uma criança, mas uma criança cujo corpo pensasse com a inocência animal de um gato.
Eis o que são actores: estranhos seres humanos feitos, como Pinóquio, numa sofisticada oficina ou que já nascem com um animal felino dentro. Que outra coisa podemos fazer que não seja amá-los e ter um louco medo deles?
Publicado no Jornal de Negócios: sempre à 6.ª feira, no Weekend

