Duas camas

É o que o ácido meio mundo de Hollywood dizia: que Charlie Chaplin era uma víbora. Há um leitor a levantar a mão e a sugerir que o insidioso termo inglês “son of a bitch” talvez fosse mais adequado e não serei eu a desmenti-lo.

Porém, uma das duas camas em que se vai deitar esta crónica está cheia de vontade de nos contar outra história. A cama é a de um miúdo, John Huston. E vejam, a cama está no meio de um quartinho do Alexandra Hotel onde então, no tempo do cinema mudo, dormia meia Hollywood. Pais divorciados Huston vivia com a mãe, e fora diagnosticado com o que se pensava ser uma doença incurável, um fígado miseravelmente atacado por nefrite aguda. O clima da Califórnia talvez fosse um paliativo e ali estavam no hotel da gente que trabalhava nessa coisa nova chamada cinema.

Se me dão licença vai tocar um telefone. É para a mãe do puto John. “Vais ter uma surpresa”, diz ela ao filho. E o John reagiu como o meu neto de três anos: “Qual?” A surpresa bateu à porta e entrou: era Charlie Chaplin. Para um miúdo daquele tempo era como se na minha adolescência os Beatles tivessem vindo a Luanda e me entrassem na casa da Vila Alice.

O que eu quero dizer é que o “son of a bitch” soubera que estava ali um miúdo desconhecido com uma doença incurável e fez o que fez: virou-se para a mãe e com um “a senhora tem de certeza coisas para fazer. Vá à vontade, que esta manhã eu fico com ele.” Huston conta que Chaplin fez mímica, palhaçou e conversou com ele, explicando-lhe como fazia cada número. Que belo “son of a bitch”.

Mais tarde, já Huston era o famoso realizador de “Falcão de Malta”, foram apresentados. Huston, constrangido, não falou do longínquo episódio. Mas tornaram-se amigos e, já mais entradotes, numa recepção do consulado italiano em L.A., John não resiste: “Lembras-te de um dia teres ido encantar um miúdo doente, num quarto do Alexandra Hotel?”

O que foste dizer, John! Chaplin eriçou-se, levantou-se de um salto, pegou na mão da mulher, Ona, e saiu disparado. Nunca mais voltaram a mencionar o incidente. Ficou claro: o que fazia a santa mão direita de Chaplin não era da conta do que fazia a “son of a bitch” mão esquerda dele.

Seduzido pelas duas camas de John, e talvez a segunda não seja dele, esqueci-me de me pôr em bicos de pé para contar como o conheci, a Huston, na cinemateca da UCLA, em Westwood. E de como, a ele que já estava de garrafinha de oxigénio, o ouvi fazer o louvor do vinho tinto, que mais deveria ter bebido do que o Bourbon que o entupiu, se tivesse aprendido a tempo.

E estava Huston com o actor Dennis Hopper, para os lados de Palm Springs, os dois numa campanha promocional de um Bourbon horroroso, com um fotógrafo genial, Victor Skrebneski, quando se lembraram que o cineasta John Ford morava ali perto, em Palm Desert. Velho de mil anos, doente e maniento, Ford não saía da cama há meses. Invadiram-lhe o quarto e Hopper, com aquele estilo que exibe em “Apocalypse Now”, “man, man” e coisa tal, diz a Ford: “Mr. Ford, já falei com a sua mulher e ela autoriza-nos a levá-lo de cadeira de rodas para o Victor nos fazer uma fotografia.”

Numa lição de arte, parecida com a que um dia dera a Spielberg, o velho Ford foi fulminante: “Meu filho, sabes qual é o teu problema? É não teres nenhum sentido do drama. Se tivesses sentido do drama, metiam-se já na cama comigo.”

Huston e Hopper perceberam logo a lição e mergulharam na cama de Ford: e esta imagem, sim, é um ícone da essência de Hollywood. E eis como, de uma cama a outra cama, se viaja da compaixão à beleza.

Publicado no Jornal de Negócios

Não sei se era Brigadoon ou um verde vale

Fim de festa em Brigadoon: casamento de que fui padrinho, a um passo de Angola independente

A primeira vez que bebi uma bica foi – como dizer? – uma estranha decepção. Já conto, mas antes declaro que os anos mais doces da minha juventude foram talvez vividos fora do planeta Terra. Não sei bem, para usar apenas exemplos de filmes, se os vivi em Brigadoon, se nesse Vale que era Verde, do filme de John Ford, que mais chorosamente nos pôs nos olhos a perfeita harmonia. E, entre Brigadoon e o Green Valley, está apresentado o meu bairro de Luanda.

Eram talvez duas da tarde, quando o meu amigo Simão me interrompeu as férias escolares: “Vamos ali ao Miguel, tomar uma bica”. Ora os meus 15 anos nunca tinham ouvido a palavra bica e sabia que, se o meu amigo Simão bebia alguma coisa, era cerveja, branca ou preta, uns finos a estalar, loirinhos ou bem mulatos. A ideia de um fino estupidamente gelado a cortar a suada tarde tropical de Dezembro foi boicotada pela aparição de duas chávenas de café. Em casa bebia-se cevada pela manhã e o meu pai moía café que trazia em grão do Porto de Luanda. Aquilo era mais do que cevada ou café fraquinho. Foi a primeira vez que a estrangeira palavra bica me passou pelo palato, a contragosto, sem adivinhar que poucos anos depois atingiria o recorde de 14 por dia, circunstância a que devo hoje um vago refluxo.

Mas deixemos as mesas do Miguel e vejamos como era o bairro. Ninguém cozinhava só para a mesa lá de casa. As vizinhas gritavam de quintal para quintal, a trocar bolinhos de bacalhau, olhe só como ficaram os meus rissóis de camarão, umas pernas de churrasco, os requintados pudins. Vivia-se em regime de comunismo gastronómico, por vezes objecto de acerba crítica: “Ai, o perú da dona Ausenda, o que é que ela lhe pôs, ficou mole, não dá gosto nenhum comê-lo! Nem com jindungo lá vai.”

Nós éramos uns peregrinos, entrávamos quando queríamos em cada casa, e o meu amigo Abílio era o favorito da minha mãe, porque comia desalmadamente, ao contrário do meu fastio, sendo logo regalado com dois ovos estrelados e vê lá se queres mais um!

Toda a vida era escrutinada, mesmo a mais íntima. Quando o filho de uma das vizinhas desapareceu de casa e, antes de ir para a tropa, se barricou em casa de uma amante mais velha, senhora de vida libérrima, de quintal para quintal a grande dúvida é que água a amante libertina tinha dado a beber ao garboso e aluado rapaz: se água de rosas, se aguinha do cu lavado.

O bairro teve a sua própria quadrilha, a primeira de Luanda a só fazer joalharias, noite calada, e sempre sem vítimas, com entradas espectaculares por uma cave ou pelo andar de cima. Eram quatro rapazes gentis que passavam depois a noite nos nostálgicos cabarets de Luanda.

Tocavam lá os Cunhas, banda do bairro também, que ensaiavam não muito longe do António alfaiate, o primeiro a tirar-me as medidas para um fatinho de casamento, que logo me deixou buelo, despardalado, com a insidiosa pergunta, “então, rapaz, para que lado é que pões a ferramenta, esquerda ou direita?”

Foi nesse doce langor, nessa vida que deslizava ociosa, numa pasmada semi-erecção entre a aurora e o crepúsculo, que um dia a vasta chana da nossa adolescência se derramou, convulsa, vendo o corpo da bela Mimi dentro de um alvíssimo vestido de noiva, a descer as escadas que davam para a mercearia do Adérito. Ia-se embora a jovem mulher que tripulava um londrino triumph descapotável, professora de inglês no liceu, as mais elegantes pernas dos nossos sonhos. Partiam com ela mil dos nossos mais ternos eflúvios. Foi com essa meiga melancolia que descobri a idade adulta e saí de Brigadoon. 

Publicado no Jornal de Negócios

Percebemos melhor quando não percebemos

Desculpem, mas tenho de falar de um dos mais vivos prosadores portugueses dos últimos 50 anos, o João Bénard da Costa.

Leiam os volumes dele que a Cinemateca publicou. Um exemplo: o João está a falar do cineasta alemão Pabst e do filme A Boceta de Pandora e os seus olhos pequeninos e brilhantes descobrem Louise Brooks.

Ó meu santo Deus, a boca do João abre-se rasgando a sua barba branca, o pulposo lábio de baixo já a brilhar com aquela saliva a que João César Monteiro chamou baba divina, e sai-lhe a expressão “o milagre Brooks”.

Qualquer um, agnóstico, ateu, pode usar a palavra “milagre”, mas quando Bénard nos revela que o milagre de Louise Brooks são cenas de beijos, de espelhismos, de dança, de costas nuas, momentos fulgurantes, choques sufocantes, a partir dos quais percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber sabemos que a natureza do milagre, para o João Bénard, é de natureza erótico-cristã, católica portanto.

E sabemos que esse milagre vem nimbado de uma transcendência que o uso trivial da expressão “milagre”, por um agnóstico a descambar para o ateu como eu, em nada cobre.

À escrita do João animava-a essa tinta negra do mistério, essa aceitação exaltada, hagiográfica, do “não perceber”, mas “não perceber” de coração satisfeito, erótico muitas vezes.

O João recusava, já se vê, a vocação totalitária da escrita progressista que tudo quer explicar e encerrar numa História fechada, numa Filosofia sem arestas. Era, avant la lettre, por exemplo, uma escrita anti-woke.

No livro de que vos falo ainda Bénard está em cima de Pabst, ou seja, ainda Bénard está em cima de Louise Brooks, mas já a falar de outro filme, Diário de uma Mulher Perdida, quando descobre nela, na sua lábil carne, no seu olhar tão carregado de tormenta, relâmpagos e sombras, o que o João chama “o desejo do desejo” e o “desejo de pureza”. Estão lá, em Louise Brooks e estão lá juntos esses dois desejos, como gémeos siameses.

A falar de uma cena de beijo-orgasmo-desmaio de Louise Brooks, o João diz que do corpo dessa actriz, do sopro vital que a anima, saem, enlaçados, e cito, “maldição e bênção”, “revelação e perda”, “início e fim”. 

A escrita de João Bénard proclama a fusão de todos os desejos, a busca desse momento pré-Big Bang em que génesis e apocalipse estavam tão sexualmente acoplados como Pai, Filho e Espírito Santo o estão na divina orgia a que os cristãos chamam Santíssima Trindade.

Outro milagre acontece em Rossellini, no filme Viagem a Itália: em plena procissão dedicada à Virgem Maria, perante o milagre de um paralítico que larga as muletas e recupera o andar, um casal desavindo, George Sanders e Ingrid Bergman, descobrem o milagre da reconciliação.

O pouco mais do que adolescente, quase homem, João Bénard foi ao cinema Eden, numa tarde de Outono, tarde de muita luz e muito sol. Viu esta cena, presenciou o milagre e, diz ele, “No fim do milagre desatei a chorar.” Onde os descrentes do cinema, os descrentes de uma estética dos ideais se riem, está o João a chorar.

Toda a sua vida de cinéfilo, de historiador e, acima de tudo, de escritor, o João andou à procura de um milagre: o da verdade que cegue tanto como quando olhamos directamente para o sol. E o João encontrou a verdade.

Cada texto dele soletra essa verdade: percebemos melhor ao percebermos que nada se pode perceber. A verdade do cinema é indizível, a verdade do João é inaudível. Sozinhos, com os escritos do João na mão, a lê-los, é como se estivéssemos no mais fabuloso deserto a olhar as estrelas. Obrigado, João, pelo milagre.

Publicado no Weekend, Jornal de Negócios

Um angélico cometa ou monstro?

Lucien pendurado no cigarro, Kerouac à esquerda

“Fá-los rir, fá-los chorar, deixa-os com tesão.” Sobre a boca que, na United International Press, dava este carinhoso conselho, havia um feio bigode farfalhudo. O bigode, contra o qual já o poeta Allen Ginsberg e o romancista Jack Kerouac se tinham indignado, escondia o que fora a bela cara de Lucien Carr.

Quem foi Lucien? O angélico cometa a que o mundo deve a beat generation ou um monstro? Venham, se faz favor, até 1937. Lucien é um puto de 12 anos, carente de figura paternal, e aparece-lhe, nos escuteiros, ou sei lá eu onde, um instrutor de 26, um homem feito. O miúdo fica fascinado: David Kammerer, assim se chama essa estrela cadente, é um tipo divertido, que enche uma sala de riso, cultíssimo, que fala de poetas franceses, do fulgurante Rimbaud. O miúdo, Lucien, ganha asas, já voa sobre os centrais, a mãe dele, mãe só, encanta-se como só uma mãe só, e deixa-o ir, aos 15 anos, com esse tutor ao México. Quando voltam, talvez Lucien tenha querido soltar-se, mesmo deslargar-se, mas para onde ele vai, outro liceu, outra universidade, Kammerer, com um crístico dom da consubstanciação, lá aparece em figura de gente.

Aos 17 anos, na Universidade de Chicago, Lucien mete a cabeça no forno e abre o gás. Uma tentativa de suicídio? Não, explica ele. Foi, isso sim, a tentativa de criação de uma obra de arte. Uma dúvida: mais na linha de um verso de Rimbaud ou do ready-made urinol de Duchamp? Ou a cabeça no forno seria apenas uma forma de encetar uma fuga de assento etéreo a Kammerer?

A mãe, em cuidados, esconde-o em Nova Iorque, na Columbia University. Agora vejam (e ouçam) bem o que uns miúdos que ainda não tinham 20 anos faziam então – Lucien vai pelo corredor do dormitório e a música que vem de um dos quartos exalta-o. Bate à porta: quer saber quem é o gajo que está ouvir um trio de Brahams! A porta abre-se e aparece-lhe a ainda juvenilíssima cara de Allen Ginsberg.

Lucien encanta a universidade. Através de Kammerer, Lucien conhecera William Burroughs. Por uma colega, Edie, vai descobrir Jack Kerouac, o namorado dela. Lou (já o podemos chamar assim), Ginsberg, Kerouac, Burroughs e as namoradas de três, que Ginsberg leva à boca os bagos de outra vinha, vão –  pelas praias do mar se vão –, à procura de manhãs claras: bebem muito e escrevem como se a literatura, em uivos, estivesse, ali mesmo, a nascer.

E volta Kammerer. Sim, Lou tinha uma pele acariciada por beleza andrógina, um espírito tapete mágico em que qualquer um se queria sentar. Mesmo assim – e diga-me, caro leitor –, rastejaria como um comando pelos corredores do dormitório, alta noite, só para o espreitar a dormir? Não?! Sim, foi o que Kammerer fez, sendo apanhado. Estava cacimbadíssimo.

Eram duas da matina de 13 de Agosto de 1944, os soldadinhos americanos quase a chegar a Paris, à caça de nazis, e Lou e Kerouac tentaram enfiar-se, clandestinos, num barco: queriam ir ver. Foram corridos e separaram-se. Mas Kammerer andava à cata e topou Lou. Tentou mais uma vez seduzi-lo? Terá Lou, como com a cabeça no gás, querido criar nova obra de arte? A verdade é que a sua faca de escuteiro rasgou a carne de Kammerer 12 vezes. Atirou o cadáver ao Hudson e apresentou-se ao juiz, um livro do grande W. B. Yeats, “Uma Visão”, debaixo do braço.

Condenado: dois anos de prisão. A prisão mudou-o. Era a “cola” da beat generation, uivou Ginsberg. Continuou amigo deles e conselheiro. Mas, como Rimbaud, despediu a poesia! Emprego certo, mulher e 3 filhos, que tratou, dizem eles, abaixo de cão, como o feio bigode farfalhudo presumia.

Publicado no Jornal de Negócios