Tous les garçons, não é Bob Dylan?

“Não há amores felizes”, canta com uma estóica e tão bela resignação Françoise Hardy. Mas será que pode haver “desamores felizes”? Os amores de Françoise, cinco contadinhos pelos dedos de uma mão, jura ela, foram todos infelizes, estradas acidentadas a desaguar na solidão. Foi na nostalgia de um desamor que Françoise Hardy se consolou, até há poucos dias, até ao dia da sua morte.

Bob Dylan foi esse “desamor feliz”. Lembro que ninguém conhecia Françoise. Vivia, em Paris, não longe do Pigalle, na rua du Aumale, a mesma onde, por menos de um ano, no século XIX, vivera Richard Wagner. Deve ter ficado por ali um acorde da “Cavalgada das Valquírias” à espera, um século depois, de entrar pelo ouvido da pequena Françoise. Ela dormia no quarto com a irmã esquizofrénica, na sala do mirrado apartamento, a mãe, solteira, contabilista pobre e tão infeliz, que tirava prazer de fazer infeliz a filha, capaz de lhe dizer que tinha umas pernas tão magras que lhe ficariam em Guimarães com elas para facas, soubesse Françoise onde era Guimarães.

Interessa é que era Hardy uma menina e começou a cantar. Em 1962, na noite em que a televisão francesa se esgadanhava para analisar os resultados do referendo sobre a eleição por sufrágio universal do presidente da república, sei lá se foi De Gaulle que pediu, aparece num intervalo a menina Françoise e da boca dela ouviu-se uma coisinha moderníssima, a canção que ela escreveu e chamou “Tous les garçons et les filles”. Os ouvidos de França desabrocharam. Escusado será dizer que no dia seguinte, todos os “garçons” e todas as “filles” entoavam, dançavam e se derretiam em tristeza com a encantada jeremiada daquela canção. E derreteu-se a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, e eu em Angola, “la main dans la main”, também.

Do outro lado do Atlântico, soprada pelo vento, chegou às mãos do ainda principiante Bob Dylan, a fotografia de Hardy. Olhou para aqueles ossos a quererem furar as maçãs do rosto, para os seios pequenos, para a cintilante mini-saia e apaixonou-se. E eu, colonialíssimo, em Angola também.

Como eu, Dylan só vira uma fotografia. Como eu, escreveu cartas a essa fotografia, chorou e suspirou nesse tempo em que os tempos tanto mudavam.  Mas eu não canto nem tenho talentos. Bob Dylan, sim. Já Françoise filmava com Hollywood e veio Dylan cantar a Paris, onde também Amália cantou, sala mítica, ao Olympia.

Françoise veio vê-lo. E Dylan, a acústica uma boa merda, falhou. Ao intervalo, recusou voltar ao palco, a não ser que a desconhecida Françoise viesse ao camarim consolar o seu derrotado ego. Ela veio. E tiremos, com a ajuda de Einstein, esses 10 minutos íntimos da fita newtoniana do tempo. No final do espectáculo, Dylan levou Hardy, Johnny Hallyday e mais uma mão cheia de franceses para a soberba delícia que era então o hotel Georges V. De olhos fixados em Hardy, deixou-os a todos menos ela, e na sua suite de americano cantou “Just Like a Woman” e “I Want You” à raptada miúda da rua du Aumale, ali perto do Pigalle.

Se isto não é uma declaração de amor, o que é uma declaração de amor? E eis a minha inquietação:  um tipo do Chega, um tipo do Bloco de Esquerda poderão ainda compreender a gentileza, a doçura, a angústia amorosa que está por trás de tudo isto?

Nada aconteceu, confessa com ternura Françoise, a não ser terem ficado a olhar-se num puríssimo sol, lá, si. Nunca mais se viram, mas Dylan escreveu esta dedicatória num LP: “A Françoise na margem do Sena, sombra gigante de Notre Dame.”

Sim, já houve amor. E que, lá do céu, Françoise continue a ser o “soleil” que tanta falta nos faz.

Publicado na última página do Weekend, no Jornal de Negócios, na minha crónica semanal

Junho quente, livro valente

livros de junho, foicinha em punho

Está a chover sobre o Parque Eduardo VII. Chovem livros! Não obstante, arde o sol no azul do céu, a fechar a Primavera, e já se sabe, Junho quente, livro valente. Aos mil títulos da Guerra e Paz que lá temos, juntamos mais dez novidades. Ora ouçam e venham visitar-nos, que Junho abafadiço sai a abelha do cortiço.

Estamos na zona poente, (nos pavilhões B29, 30, 31 e 32), no alto do Parque, com vista soberba para um preguiçosíssimo e lúbrico rio: é o único sítio de onde se vê o Tejo, descuidado, de robe aberto à brisa!

E nessa jam session que é a Feira do Livro de Lisboa, também a Guerra e Paz, com uma voz de Ella Fitzgerald (ah pois), lançará dois novos romances, ambos de estreia: da brasileira Fernanda Teixeira Ribeiro, um inovador Cantagalo, Prémio Revelação Literária da UCCLA-CMLisboa; do português Pedro Fernandes, um negríssimo Os Filhos de Nihil, Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal. Obrigado UCCLA, obrigado Lions.

Ah, o 10 de Junho! Às 17:00, numa sessão que vai ser universal e nada paroquial, Margarida Braga Neves e António Carlos Cortez falam de Camões-Jorge de Sena, e aí se estreará o talvez mais belo dos 5 livros que comemoram os nossos 500 anos de Camões vistos por Sena. Apoiado pela Gulbenkian, o livro chama-se Babel e Sião: está lá, de Camões, a redondilha Sobre os rios que vão, em papel negro escrita a prata. E está lá o conto Super Flumina Babylonis, no primeiro encontro, no mesmo livro, de Sena e Camões enquanto poetas e criadores. Obrigado, Isabel de Sena, por ter abençoado este encontro comovente.

Nesse livro também está o Salmo 136, Babel e Sião, elegíaca digressão sobre o cativeiro de Israel, que inspirou Camões: esse mesmo salmo é o mote de um outro livro lúcido e pungente de Bernard-Henri Lévy, Solidão de Israel, combativa análise da guerra que o 7 de Outubro, perpetrado pelo ataque do Hamas, desencadeou. João Soares e Henrique Monteiro apresentam o livro, no próximo dia 8, às 14:00.

E, ou não se chamasse esta editora Guerra e Paz, juntámos, com a ajuda da Academia Militar e do Instituto Universitário Militar, os melhores especialistas militares e civis de estratégia: o livro chama-se Entender a Guerra Hoje: Estratégia, Guerra e Política. O título diz ao que vamos e a organização é de Antunes Ferreira, Luis Barroso. António Paulo Duarte.

Mas eis do que Junho estava à espera: agora sim, para os que querem perceber de onde vem a mortal pulsão totalitária que cerca hoje as nossas democracias, está completa a História do Fascismo, de Emilio Gentile. Menos de um mês depois do I volume, chegou o II volume. Volume I e II estão na Feira e, no dia 15, às 17:00, Isabel Alçada e Paulo Portas, falarão dessa obra monumental e da colecção Os Livros Não se Rendem, de que, há dois anos, a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações fazem doação à rede nacional de bibliotecas públicas: já ofereceram cerca de 4 mil livros.

Sim, não temos tabus. Contra os modernos gulags e auschwitzes do pensamento, foi com gosto que publiquei, do meu amigo Pedro Correia, Tudo é Tabu, Cem Casos de Censura, onde, com limpidez, se fala, caso a caso, de cem exemplos do que João Ubaldo Ribeiro chamou o delírio «totalitário, autoritário, asnático, deletério e potencialmente destrutivo» do activismo radical dito «politicamente correcto».

Das novas chancelas, que a Rita Fonseca lidera, na Crisântemo, escolheu ela duas digressões freudianas. Nestes tempos narcísicos, de recalcamento e algum Thanatos, é mesmo bom voltar a ler, do velho Sigmund Freud os sempre novos Do Narcisismo e Além do Princípio do Prazer. As edições estão leves, livrinhos de se meterem no bolso… e estão lindas.

Ora, se houve livro em que a Rita se esmerou, para a chancela de ficção, a Euforia, foi no originalíssimo romance em que volta a haver cowboys e cow-girls, mas contemporâneos, e há amores e desilusões com cores novas e originais, regresso à natureza como quem se fecha num monte no Alentejo. Chama-se Feita e Desfeita (Done and Dusted, no original), é de Lyla Sage, passa-se no Rancho Rebel Blue, e o romance é faiscante e de capa linda. Na América já é um bestseller: quem diria que os cow-boys, como Jesus Cristo, também eram capazes de ressuscitar.

Há mais sessões na Feira. Estão todas aqui, com indicação de dia, hora e local. Façam o favor de vir todos, todos, todos.

Manuel S. Fonseca, editor

Glória aos baixinhos

Um metro e meio basta para pôr o mundo arder. Olhem para Elizabeth Taylor. Por esse metro e meio, de uma geografia alcantilada, diga-se, incendiaram-se corações, mentes e corpos. O pobre Richard Burton, que estava a menos de um dedo do 1,80, tinha todos os centímetros em fogo quando via essa pequena Liz. Pior, ainda mais quando a não via.

Liz Taylor não foi caso único. O metro e cinquenta e dois de Joana d’Arc pareceu gigantesco aos franceses guerreiros que queriam expulsar os ingleses invasores. Baixinhas como ela foram Cleópatra e a Rainha Victoria, o que não as impediu de terem o mundo a seus pés.

E deixem que me meta entre as mulheres. Eu tinha então uns 11 anos cambutinhas, como em Luanda se chamava a gente de baixa estatura, e temia a minha profe de matemática, Maria de Lurdes, a quem, à boca calada, chamávamos Joana Bocarra. Vejam-na a entrar na sala de aula. Levantámo-nos como uma mola, bom dia sô tora, tal qual ordenava o ritual do Salvador Correia, o mais belo liceu do mundo. A sô tora olha para a sala, eu lá bem atrás, para fugir a humilhantes chamadas ao quadro, e ela grita: “O menino lá ao fundo, porque é que está sentado? Levante-se!” O menino lá ao fundo era eu e estava tão de pé quanto podia estar, com o meu 1,64, que tomara a Liz Taylor e a Joana d’Arc. Ganhei a solidariedade da turma, de que passei a ser a mascote.

Baixinhos, cambutinhas eram actores como Charlie Chaplin, Woody Allen, Al Pacino, Richard Dreyfuss. Tom Cruise, que vi, olhos nos olhos, numa ante-estreia num cinema da Wilshire Boulevard, é mais baixo do que todas as mulheres dele, mesmo que elas descalcem os sapatinhos de salto alto.

Billy Cristal é outro dos short guys, o que não o impediu, sem para isso mexer uma palha, de arrancar e se maravilhar com o ultra-exuberante orgasmo de Meg Ryan, uma sinfonia expletiva e enfática num prosaico McDonald (?), pequeno monumento gutural, que podem visitar revendo o filmezinho que se chama “When Harry Met Sally”.

Os atributos do cambuta não são apenas os talentos de actor. Os baixinhos podem ver-se contaminados pela sede de poder. Napoleão Bonaparte tinha menos de um 1,70, Churchill a mesma coisa. Alexandre, o Grande, Benito Mussolini, o imparável Berlusconi eram da minha altura e Estaline tinha só mais um centímetro, tal como Lenine.

Franco, o ditador espanhol, com o seu 1,62, era metade de Salazar, e outro metro e sessenta e dois, o de Ghandi, semi-nu, pouco mais de uma tanga, mudou o mundo, derrubando com fragor o Império britânico. Deng Xiao-Ping, o maoista que livrou a China do maoismo dizendo aos chineses que enriquecer era coisa boa, era cambutíssimo, menos de um 1,50. Era, digamos, o Danny De Vito da política mundial.

Com o devido respeito por Lincoln, De Gaulle e mesmo Bin Laden, todos acima de 1,90, nenhum deles tem o charme, mesmo que por vezes tintado de odioso, dos meus heróis baixinhos.

Tinha muita vontade de falar de Ava Gardner, que era uma mulheraça de 1,68, mas dir-se-ia não ser desta história. E lembrei-me que a primeira vez que dormiu com um homem, foi com Mickey Rooney, que media um rasteirinho 1,57. Vestido, era 1,57 de energia, gags e gargalhadas. Despido, diz Ava, “corta uma mulher ao meio, como faca quente a mousse de chocolate”. Lana Turner, a melhor amiga de Ava, que dormira (se assim se pode dizer) com ele antes, e por ele ter incarnado a mesma personagem, Andy Hardy, em vários filmes, chamava-lhe o “Andy Hard-on”, rija delícia da língua inglesa que não traduzirei, deixando-vos com a mousse de Ava.

Publicado no Jornal de Negócios