O primeiro tango em Lisboa

Ilustração de Nuno Saraiva

Do último tango em Paris sabem Marlon Brando e Maria Schneider. E do primeiro tango em Portugal? O que sabem os portugueses dos tangos que, com mais ou menos pacote de margarina, se dançaram em Lisboa, no Porto ou em Coimbra no 25 de Abril de 1974? Já se dançaria tango, continuemos a chamar-lhe assim, em Portugal?

Esse tango nu, sobre lençóis ou sobre o mais humilde soalho – que o chão da sala não era um exclusivo de Marlon Brando –, é um tango que os humanos dançaram sempre. E, se bem me lembro, nas noites de Lisboa de 1973, não havia tango que não se dançasse: por cima ou por baixo, pela frente ou por trás, era um tanto faz. Diria até que a líbido escondida, recalcada, a que a Censura não deixava pôr sequer a pontinha de fora, nem nos filmes, nem nos jornais e livros, viria a ser uma força – que força era essa, amiga? – da revolução.

A Revolução de Abril foi, também, uma revolução erótica. Libidinosa até. Não tenho nem preciso de estatísticas, mas tal como o pregador das “vinhas da Ira”, de John Steinbeck, me ensinou que, quando inundados pelos dons da Graça, os seres humanos ganham um sobrenatural incêndio dos sentidos, o que aliás Santa Teresa de Ávila não desmente, tenho a certeza de que a euforia do 25 de Abril, o ronco dos carros de combate, a torre armada da Chaimite com o fálico canhão a dançar em busca de alvo, os milhares de cravos a pôr ao rubro o cano das G3, essa automática que tanto dá para o tiro a tiro, como para a orgástica rajada, puseram em sobressalto tudo o que nos portugueses era libido, desejo, vontade de posse e de entrega.

E se querem voz autorizada a comprová-lo, leiam a revista “Modas e Bordados”. Em 1975, numa carta anónima, Gisela, menina de 15 anos, contava como, na noite de 25 de Abril do ano anterior, depois de correr com o primo, esfusiantes, loucos de alegria, de abraço em abraço pelos lugares da Revolução, fizeram até ao fim o que nunca tinham até aí ousado fazer.

É celebre a cena da jovem rapariga que “inventou” os cravos de Abril. Um soldado – montado numa Chaimite? – pediu-lhe um cigarro. Ela levava na mão um molho de cravos. Estendeu-lhe um, dizendo: “Um cigarro não tenho, se quiser tome, que um cravo oferece-se a qualquer pessoa!” E foi assim que, levantando-se o manto, se deram cravos e se deram rosas, porventura os primeiros botões de rosa.

Diga-se que uma das qualidades da Revolução de Abril é a sua juventude. E deixem-me dizer as coisas pelo nome: foram uns tipos jovens, com ar de actores de Hollywood, que fizeram o 25 de Abril. Em vez de uma Revolução de tropa armada, trombuda, caras de velhos coronéis ou decrépitos generais, os revolucionários de Abril eram uns “handsome guys”, tinham caras frescas, bonitas. Salgueiro Maia, Diniz de Almeida, Sousa e Castro têm 29 anos, mesmo Otelo, esse actor perdido, tem só 36. Parecem saídos de um filme americano dos anos 50 ainda a preto e branco, com belos rostos masculinos, sedutores, na plena posse do vigor ou, para dizer o que os americanos diriam, na plena posse da sua “manhood”.

E é também por isso que, ao contrário do tango de Marlon Brando em Paris, este não é um tango angustiado e ressabiado. O tango desinibido do 25 de Abril não precisou sequer de margarina. Era um tango de inocência, de uma urgentíssima inocência em brasa. Basta ouvir o que se gritou nas ruas e o que escreveu nos muros. Bocas coladas em beijos, corpos incendiados em vaivém, fica para a história essa imortal palavra brejeira e anarquista, que um cartaz e algumas paredes ostentariam então: “Mais vale uma na mão do que duas no soutien!”  

Publicado no Jornal de Negócios

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