Um espectro de 2 metros e 120 quilos

Que maciça silhueta de cavaleiro é que provoca um tão luminoso sobressalto na bela mulher madura, de pele ainda tintada de desejo, que surge à porta da casa? Que tensão, que camuflada distância, congela os dois irmãos que, separados há anos, se apertam as mãos quase com vergonha? Sim, sei bem que sabem, que estou a falar da abertura de “A Desaparecida”, de John Ford.

Viram o beijo de John Wayne à testa da cunhada? Que envio lírico se solta desse beijo e embaraça aquela esposa e mãe, pondo nas nossas faces de espectadores o carmim do rubor? Que antigo romance adivinhamos no pudor desse beijo?

Que Ulisses sem Penélope é este John Wayne, saco de desilusão montado a cavalo, de andar desengraçado, de corpo tão estranho à harmonia familiar? Que deus ou deusa da desgraça o soprou do fundo horizonte, cavaleiro vindo dos mortos, para vir assombrar a plácida rotina dos vivos?

Quem, sem dizer uma palavra, nos conta estas histórias é a prodigiosa e poética realização de John Ford, quem as contas são os olhares, os gestos quase imperceptíveis, as inflexões de voz da personagem de Wayne, Ethan de seu nome, das hesitações e tão bonita discrição do irmão e da cunhada, quem as conta é a ousada intrusão da música de Max Steiner.

É esse o milagre do cinema, do pantagruélico cinema que se alimenta do Homero de há 30 séculos. Tão moderno como Homero, John Ford deixa, em pinceladas rembrandtianas, a sugestão de um romance familiar tabu, deixa cair no rosto de John Wayne e da cunhada a gota de amarga saudade do raio de um desejo talvez nunca consumado. John Ford deixa-nos, enfim, adivinhar o escuro ressentimento de quem, como Ethan, nunca provou a lenta pasmaceira da felicidade doméstica.

Não é para essa felicidade que John Wayne está guardado. Ele traz nos alforges os mesmos ventos que um dos deuses deu a Ulisses. E os ventos vão soltar-se e devastar esta família em harmonia, vão devorar esta mulher que vemos entrar em casa de costas, recuando, para não deixar de olhar para John Wayne, numa coreografia tão bailarina, que até dói no nosso manso coração de espectadores.

Os índios, os terríveis comanches, hão de vir a seguir, numa via dolorosa de destruição e morte. Só sobrevive a filha pequenina, Debbie, que os índios raptam.

Ethan, a personagem de John Wayne, o Ulisses mais carregado de ódio que a história da ficção já viu, John Wayne, essa funda mina de negrume, sem ouro nem lítio, irá, de ilha em ilha, de deserto em deserto, em busca dela, da sobrinha Debbie, para repetir o gesto que fez quando a conheceu: Ethan agarrou na pequena Debbie e levantou-a no ar como quem segura nas mãos, contra o céu, a essência da inocência.

Chamei a esse prodigioso movimento, gesto – qual gesto, é mas é um verso, o primeiro verso, verso suspenso à espera da rima que o feche e feche em redenção um longo poema de raiva, som e fúria.  E é este, depois de obtida a redenção, o fecho de “A Desaparecida”.

A porta que se abriu para que este filme começasse e pela abertura dela percebêssemos ao longe a silhueta fantasma de cavalo e cavaleiro, esse Ulisses fordiano que vem em busca da sua Ítaca, fecha-se agora.

No doce útero que é a casa entram e ficam todos, a nova família, o índio Moses, Debbie que um dia talvez venha a ser outra Penélope. Cá fora, de fora, fica apenas, agarrada ao seu amado cotovelo, olhos a esvaziarem-se no infinito, a solidão irremediável, peregrina e estrangeira de John Wayne, espectro de dois metros e 120 quilos, que dá corpo ao mais pungente dos Ulisses, épico como em Homero, trágico como em Dante.

Publicado em Jornal de Negócios

A minha Baby

Há esses pais que se gabam de beijar as lágrimas dos seus filhos. Do que me lembro do meu pai, que não era comigo de muitos beijos, é da felicidade que retirava dos sorrisos que me punha de orelha a orelha. Estava eu a dar a volta dos 12 para os 13, corria o ano de 1966, e ele julgava que me arrancaria um desses sorrisos, um de Luanda a Moçâmedes, ao oferecer-me uma máquina de escrever. Era uma Hermes Baby, teclado azert, verdinha, de se levar debaixo do braço como hoje se leva um tablet.

Olhei para o monstrinho verde, como quem olha para um extraterrestre, numa reacção pessoana, de primeiro estranha-se e mais tarde se verá se se entranha! Sabia lá eu quem era Fernando Pessoa. E ainda menos adivinhava as aventuras que viveria com essa doce Hermes Baby!

Logo nesse ano, depois de me dedicar a aprender a decorar o teclado, com o mesmo afinco com que chutava a pesada bola de catchú no quintal, e depois de ser capaz de bater um texto à máquina de olhos fechados, a minha Hermes, ó baby, ouviu comigo religiosamente os relatos dos jogos desse Portugal que Eusébio levava ao colo pelos belos relvados ingleses. A minha Hermes gritou, chorou baba e ranho e explodiu em glória quando Eusébio vergou a Coreia do Norte à humilhação da remontada de uns zero três a uns cinco a três, essa conta que Deus fez, por Eusébio, por duas vezes, lhe ter ensinado a tabuada da coisa.

A minha Hermes colou-se-me aos braços, entrou-me olhos dentro, e o meu jovem cérebro habituou-se a deambular pelas 47 teclas e pela barra de espaços, deliciando-se a inventar mentiras e a confessar as poucas verdades que ia descobrindo. Eu já quase não batia nas teclas, os meus dedos acariciavam-nas apenas e, depois de fechar as portadas da janela, no semiescuro, despia um bocadinho a Baby, enrolando-lhe dengosamente a fita de tinta vermelha e negra, enquanto o rolo apertava com firmeza, para não dizer que se roçava, como então dizíamos que jean jacques se roçou, pelas duas folhas de papel separadas por um químico (o que eu sempre gostei de duplicados!).

Tornámo-nos inseparáveis. Aos 15 anos, arranquei-lhe poemas, manifestos, um jornal de rua, os novos estatutos de Os Falcões, um clube de candengues caluandas mal saídos dos cueiros, que era o que nós éramos, ali no cruzamento da Fernando Pessoa com a Alberto Correia. Em 1970, aos meus 17, já essa Baby de 4 anos, escrevia os textos do catolicíssimo e progressivíssimo programa Aguaviva, que a luandense Rádio Ecclésia me deixou fazer. E mais, já o teclado da curvilínea Hermes se metia em conversas de adultos, escrevendo uma rubrica semanal, “O Rei Morreu, Viva o Rei”, no grande programa Equipa, de que o patrão, Carlos Brandão Lucas, fazia a coisa mais moderna e fora da caixa da rádio luandense.

A minha Hermes Baby levou pela mão este ceguinho que eu sou revelando-lhe as assombrosas fendas cósmicas da Guerra Fria, pediu-me que olhasse lá de longe a guerra do Vietname, e de perto a nossa ultramarina guerra colonial. Mas devo-lhe sobretudo os êxtases com que olhou para o que em Brigitte Bardot eram “rondeurs” e um ou outro lábil declive.

A Baby correu comigo o mundo, Paris, Grenoble, Lobito, Los Angeles, San Francisco, Pinhel, San Sebastian. Entrevistou a Glenn Close e a Angelica Huston, o Storaro e o Coppola. Mesmo o George Lucas. Descansa, agora, aqui em casa, caixa aberta para que o teclado brilhe. Que o meu pai saiba – diz-lhe, diz-lhe, Deus! – dos mil sorrisos, daqueles de 700 km de Luanda a Moçâmedes, que esse regalo dos 13 anos, arrancou ao meu coração.

Publicado no Jornal de Negócios

João Bénard da Costa, 15 anos

Foto do meu jantar de despedida da Cinemateca, em Março de 1992. O que estarei eu a tentar demonstrar ao João? E o Manel Cintra Ferreira, à direita do João, em que mundos de sonhos estará mergulhado?

Olá, João! Já sei. Não me vai responder. Há 15 anos, que o João persiste nesse silêncio obstinado. Mas quero dizer-lhe que mesmo quando se cerra nesse mutismo, há frases suas que viajam no ar como se fossem cometas, auroras boreais, um meteorito igual ao do 2001, do Kubrick.

E deixe-me passar-lhe a mão pela vaidade – essa, sei que o João a tinha – há 15 anos que ninguém, mas mesmo ninguém, voltou a conseguir amar e fazer amar os filmes como o João nos ensinou a amá-los. Aquela sua forma de amar os filmes acariciando a língua portuguesa, enleando-se lubricamente nela, enchendo-a de beijos levemente salivados, esse modo misterioso de amor há 15 anos que se eclipsou, como se nos tivessem roubado Brigadoon ou a perfeita harmonia do verdíssimo vale que John Ford criou. Se tenho saudades? O que acha, João…

Publicado no Correio da Manhã, na minha Bica Curta

O primeiro tango em Lisboa

Ilustração de Nuno Saraiva

Do último tango em Paris sabem Marlon Brando e Maria Schneider. E do primeiro tango em Portugal? O que sabem os portugueses dos tangos que, com mais ou menos pacote de margarina, se dançaram em Lisboa, no Porto ou em Coimbra no 25 de Abril de 1974? Já se dançaria tango, continuemos a chamar-lhe assim, em Portugal?

Esse tango nu, sobre lençóis ou sobre o mais humilde soalho – que o chão da sala não era um exclusivo de Marlon Brando –, é um tango que os humanos dançaram sempre. E, se bem me lembro, nas noites de Lisboa de 1973, não havia tango que não se dançasse: por cima ou por baixo, pela frente ou por trás, era um tanto faz. Diria até que a líbido escondida, recalcada, a que a Censura não deixava pôr sequer a pontinha de fora, nem nos filmes, nem nos jornais e livros, viria a ser uma força – que força era essa, amiga? – da revolução.

A Revolução de Abril foi, também, uma revolução erótica. Libidinosa até. Não tenho nem preciso de estatísticas, mas tal como o pregador das “vinhas da Ira”, de John Steinbeck, me ensinou que, quando inundados pelos dons da Graça, os seres humanos ganham um sobrenatural incêndio dos sentidos, o que aliás Santa Teresa de Ávila não desmente, tenho a certeza de que a euforia do 25 de Abril, o ronco dos carros de combate, a torre armada da Chaimite com o fálico canhão a dançar em busca de alvo, os milhares de cravos a pôr ao rubro o cano das G3, essa automática que tanto dá para o tiro a tiro, como para a orgástica rajada, puseram em sobressalto tudo o que nos portugueses era libido, desejo, vontade de posse e de entrega.

E se querem voz autorizada a comprová-lo, leiam a revista “Modas e Bordados”. Em 1975, numa carta anónima, Gisela, menina de 15 anos, contava como, na noite de 25 de Abril do ano anterior, depois de correr com o primo, esfusiantes, loucos de alegria, de abraço em abraço pelos lugares da Revolução, fizeram até ao fim o que nunca tinham até aí ousado fazer.

É celebre a cena da jovem rapariga que “inventou” os cravos de Abril. Um soldado – montado numa Chaimite? – pediu-lhe um cigarro. Ela levava na mão um molho de cravos. Estendeu-lhe um, dizendo: “Um cigarro não tenho, se quiser tome, que um cravo oferece-se a qualquer pessoa!” E foi assim que, levantando-se o manto, se deram cravos e se deram rosas, porventura os primeiros botões de rosa.

Diga-se que uma das qualidades da Revolução de Abril é a sua juventude. E deixem-me dizer as coisas pelo nome: foram uns tipos jovens, com ar de actores de Hollywood, que fizeram o 25 de Abril. Em vez de uma Revolução de tropa armada, trombuda, caras de velhos coronéis ou decrépitos generais, os revolucionários de Abril eram uns “handsome guys”, tinham caras frescas, bonitas. Salgueiro Maia, Diniz de Almeida, Sousa e Castro têm 29 anos, mesmo Otelo, esse actor perdido, tem só 36. Parecem saídos de um filme americano dos anos 50 ainda a preto e branco, com belos rostos masculinos, sedutores, na plena posse do vigor ou, para dizer o que os americanos diriam, na plena posse da sua “manhood”.

E é também por isso que, ao contrário do tango de Marlon Brando em Paris, este não é um tango angustiado e ressabiado. O tango desinibido do 25 de Abril não precisou sequer de margarina. Era um tango de inocência, de uma urgentíssima inocência em brasa. Basta ouvir o que se gritou nas ruas e o que escreveu nos muros. Bocas coladas em beijos, corpos incendiados em vaivém, fica para a história essa imortal palavra brejeira e anarquista, que um cartaz e algumas paredes ostentariam então: “Mais vale uma na mão do que duas no soutien!”  

Publicado no Jornal de Negócios

Livros de Maio, maduro Mario

Nenhuma alarvidade nos nove livros de Maio da Guerra & Paz, nem mesmo no livro que dessas alarvidades se reclama, o intrépido, inteligente e curiosíssimo Dicionário Sério de Calão, Javardices e Alarvidades, que o sempre inquieto e irrespeitoso João Pedro George assina. A ironia que o anima faz pendant, atrevo-me eu a dizer, com o trocista, sarcástico e altamente desconstrutivo romance com o belo título Coração, Cabeça e Estômago, do insatisfeitíssimo Camilo Castelo Branco.

Já Camilo, até pelo que que escreveu sobre as cartas de Camões, havia de gostar de ver o seu romance publicado numa fornada que, com o apoio da Fundação Gulbenkian, inclui o encontro de dois titãs, Luís Vaz de Camões e Jorge de Sena, em Os Lusíadas e a Visão Herética. A Guerra & Paz comemora assim os 500 anos de Camões, com este livro em capa dura, faces do miolo pintadas à mão, lombada à vista, ou seja, numa edição que quer ser um brinco e uma raridade, juntando a versão integral de Os Lusíadas a dois textos em que Jorge de Sena nos explica porque devemos ter orgulho intelectual, filosófico e literário no mais esplendoroso poema da literatura em língua portuguesa. (Eu amo este livro: tinha de dizer isto. E obrigado Isabel de Sena por me ter ajudado a viver esta aventura!)

Deixem-me mudar de agulha: outro acontecimento editorial é a chegada do 1.º volume da História do Fascismo, do historiador italiano Emilio Gentile. São as primeiras 700 páginas de uma obra monumental: as próximas 700 chegam – 2.º volume – em Junho. Uma vénia aos meus parceiros, a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações: só a vossa generosa ajuda, disponibilizando a edição a toda a rede nacional de bibliotecas, permite que esta investigação do mais alto rigor chegue até nós. (Caro Luís Parreirão, o meu amigo é o interlocutor que faz feliz qualquer editor. Não lhe perdoo é que goste mais de livros do que eu!)

E como vou agora falar de Insubmisso, Memórias de um polícia? Hoje que a justiça portuguesa vive um fogo cruzado entre políticos e a Procuradoria, entre magistratura e ministério público, este livro mostra-nos o árduo caminho da investigação policial para chegar à verdade, desmontando tantas mentiras: Teófilo Santiago foi o polícia de três processos marcantes, Face Oculta, Apito Dourado e Aveiro Connection. Escutas, pressões, demissões, Teófilo Santiago leva-nos aos incendiários bastidores (há revelações, sim!) desses casos, na companhia do jornalista Eduardo Dâmaso. (Se vai ser polémico? Ó diabos, isso não adivinho, mas é rigoroso, que é esse o middle name destes meus autores)

Falemos de poesia, desses «jovens e belos como a brisa das manhãs», os amantes de Lisboa, que Ana Paula Jardim, vencedora do Prémio de Poesia Glória de Sant’Ana, deixa que lhe invadam o seu novo livro, Rua do Arsenal, talvez para contarem «as pedras como quem lê histórias». Como se pode não o ler?

E entre a poeta e o romancista de que falo a seguir, deixem que invoque o Prémio Nobel. O jovem cientista Stefano Sandrone, no seu Vida de Nobel, entrevistou 24 Prémios Nobel, 9 da Química, 4 da Física, 8 da Medicina e 3 da Economia. É um livro de vida, de ciência, de desafios e descobertas incríveis.

Uma descoberta perturbante e convulsa é a do herói de Nascido de Ninguém, primeiro romance de Frederico D’Orey. Com grande ritmo, acidentada, sem descanso, a prosa de D’Orey leva-nos ao coração da Segunda Guerra Mundial, às suas sequelas e sombras sórdidas, sem deixar de ser um romance portuguesíssimo, com Campo de Ourique em fundo. Estreia a não perder.

E fecho com o meu amigo Paulo Nogueira. Este é o terceiro livro que me manda do Brasil. Um novo ensaio sobre o Ocidente e o wokismo: O Cancelamento do Ocidente. Tem um subtítulo longo: «A sociedade que criou a democracia e o Estado de Direito está a autodestruir-se. Como? Porquê?» O Paulo não se resigna e convoca-nos a usarmos o nosso melhor contra essa vaga destrutiva: o humor, a arte, a tolerância e a ciência. (Komé, Paulo, meu kamba, aí vai o meu candando: estamos juntos nessa luta!)

Da nova chancela, a Crisântemo, um livro ambicioso, com mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo: A Chave da Tua Energia, de Natacha Calestremé, oferece-nos 22 métodos para eliminar o cansaço, soltar a energia aprisionada no nosso corpo. Pergunta minha: há algum mal em tentar preencher o vazio com amor e luz?

E aqui está, são os livros de Maio, maduro Maio. Quem os pintou?

Manuel S. Fonseca, editor