
O cinema é uma invenção grega. Digo isto, com o meu melhor ar de Mickey Rourke, e já sei que tenho o Matt Dillon aos gritos comigo. Lembram-se da explosão dele no Rumble Fish do Coppola? “Man, what the fuck did the Greeks have to do with anything?”
Desculpa Matt Dillon, mas têm! Homero inventou o cinema há 30 séculos, inventando as duas grandes formas narrativas que, mais às escondidas ou mais à descarada, estão presentes em centenas de filmes.
Homero inventou essas duas irmãs gémeas, muito giras e muito cheias de curvas épicas, chamadas Ilíada e Odisseia. Vaidosas como são, não lhes bastava a orgia, que provaram e gozaram em tantas camas literárias. Não, as manas Ilíada e Odisseia tinham de aparecer no cinema: as melhores histórias, as que subjazem ao filme, enquanto o filme ainda está a caminho de ser um filme, são a Ilíada e a Odisseia.
E tanto é assim que Jean-Luc Godard, numa forma de acumulação primitiva de capital estético, ao filmar O Desprezo, adaptando o romance de Alberto Moravia, pôs as personagens a arranjar dinheiro e a discutirem um script para filmar uma Odisseia, quando em boa verdade estava a filmar uma Ilíada. Experimentem ver esse belo Desprezo, se mais não for para ver os homéricos nus de Brigitte Bardot, na cena de abertura.
Mas o melhor exemplo não é o desse filme em que a B.B. pergunta se são belas as suas nádegas, se são belos os seus seios (são!), mas sim o humilde e popular Rio Bravo, filme de cow-boys de um génio do cinema, Howard Hawks.
Rio Bravo passa-se numa aldeola perdida na Grécia! – perdão no Oeste americano. É um lugar fechado que um xerife defende contra os bandidos que querem devassar a aldeia. Um deles, um criminoso mais cabotino do que Billy the Kid, foi capturado pelo xerife, John Wayne, e jaz agora na cadeia local, refém, tão refém como refém estava Helena em Tróia, ainda que por mais doces razões.
E essa pequena Tróia sofre o cerco de um bando irado e criminoso. Em Rio Bravo, como em Tróia, é à porta dessa miserável vilória que os heróis se vão bater para defender a lei. E os heróis são: um xerife que é uma espécie de Heitor, um amigo afogado em álcool, um velho coxo apaixonado pelo xerife, um jovem inexperiente, com vozinha de tiro-liro-liro.
A Tróia de Rio Bravo é uma Tróia muralhada a dinamite e a pontaria infalível por estes heróis de baixa extracção. Defendem a lei, o bem comum, até o princípio da democracia, atrevo-me a dizer. De que lado estaria Ventura, se Ventura entrasse em Rio Bravo?
Como em todos os filmes de Hawks, há a mulher. A mulher hawksiana é torrencial e indómita. Em Rio Bravo, a mulher é Angie Dickinson de quem logo vemos, se começarmos a olhar para ela de baixo para cima, as esplêndidas pernas, protegidas por um seguro de um milhão de dólares no Lloyds Bank of London.
Além das pernas, ao contrário do silêncio feminino que impera na Ilíada, Angie Dickinson tinha voz. Na Ilíada, Briseida, a escrava amada de Aquiles, não tem voz, a não ser para chorar Pátroclo, e a voz de Andrómaca, outra heroína, é a do lamento, implorando ao marido Heitor que não vá lutar com Aquiles.
Angie Dickinson tem outra voz e é nessa voz imparável, suavemente dominadora, que John Wayne busca e encontra o consolo que Heitor nunca terá na Ilíada, porque Homero pode muito bem ter inventado o cinema, mas nem ele nem os trágicos gregos inventaram o happy-end, esse prodigioso achado de Hollywood. A esse happy-end, que o cinema inventou, devo o vício infantil e perverso do optimismo, meio-caminho como o código postal, para a felicidade.
Publicado em Jornal de Negócios, no Weekend