A cama da felicidade

Lembro-me de um tipo, não sei se era Locke ou Hobbes, de quem o Eduardo Prado Coelho dizia que a sua maior obsessão era o medo. A minha é a felicidade. Sobretudo agora, que já estou velho de mais para ser outra coisa senão feliz.

O que me terá então dado, aos 20 anos, para ter escolhido Filosofia como formação na velha Fac de Letras: os filósofos eram mal-vistos, uns tipos que andam de cabeça no ar, a olhar para o Sol e para a Lua. Resultado: não vêem onde põem os pés e espatifam-se no primeiro buraco.

E insisto: tenho uma obsessão, na verdade duas, se ser do Benfica e querê-lo sempre campeão, também conta. Mas a felicidade é uma justa obsessão porque sem ela não podemos fazer bem a nós próprios ou ao mundo que nos rodeia. Quando eu era pequenino diziam-me que, se na rua mostrasse medo a um cão, o bicho se largaria a ladrar-me. A vida é um cão que nos ladra, desatinado e arrogante, se lhe mostrarmos uma pontinha que seja de infelicidade.

E volto ao buraco onde deixei os filósofos. Um deles é Heraclito, o grego Heraclito. O Marco do Big Brother – lembram-se dele? – é célebre por ter dado um pontapé. Se a celebridade se mede a pontapé, então o pontapé de Heraclito é uma frase lindíssima e intrigante: “Para os que entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que correm por eles”.

Foi isto que ele disse. Há um rio, pode ser o mar, entramos nas águas, à cálida temperatura do meu luandense Mussulo, mergulhamos, nadamos um pouco, e quando mergulhamos outra vez, já são outras as águas que nos acariciam a pele. A vida é como esse rio, águas que correm e que só nos tocam uma vez.

O que a obsessão com a felicidade me diz é que a vida é essa água e que a mesma água não passa nunca duas vezes. Talvez no futuro alguma boa boca nos queira dar beijos, mas os lábios que alguém hoje nos oferece não voltarão a abrir-se amanhã com o mesmo sorriso e a mesma entrega. Um poeta, o romano Horácio, resumiu tudo noutra frase, “Carpe Diem”. “Agarra o Dia”. Não deixes que o tempo fuja, vive em plenitude.

Outro dos meus filósofos é Parménides. De Parménides, como de Heraclito, chegaram-nos só fragmentos. Num deles, Parménides fala-nos do caminho da Verdade e diz-nos que esse é o caminho do que é e não pode não ser.

É uma frase difícil. Comparado com o pontapé do Marco do Big Brother este é um pontapé de bicicleta. Ou um saudoso pontapé de moinho à Artur Jorge. Simplificando, eu atrevo-me a dizer que o que é, é aquilo que existe e que aquilo que existe não pode não existir. Podemos meter a cabeça na areia como a avestruz, mas não conseguiremos nunca apagar aquilo que existe. Este é outro dos princípios para o obsessivo da felicidade: aceitar o que existe, aceitar – nunca negar – a realidade, o ódio ou o amor com que o mundo nos mima ou sacode.

Há uma razão egoísta para perseguirmos a felicidade: é que ela dá um pessoalíssimo prazer. No entanto, a felicidade é mais do que um ingrediente individual: a felicidade protege e muda o mundo. A felicidade é a coisa mais revolucionária que existe.

Há mais de dois séculos que saímos à rua aos gritos pela liberdade, igualdade e fraternidade. Temos boas razões para isso, muito embora falte a esse utópico programa um ponto fundamental. A humanidade que somos, precisa de beleza. A liberdade, a igualdade e a fraternidade respondem a necessidades básicas e a imperativos éticos. Mas a vida humana não se esgota no reino da necessidade e da ética. Precisamos do luxo, da calma e da volúpia que é a beleza. É essa a cama da felicidade.

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