A cama da felicidade

Lembro-me de um tipo, não sei se era Locke ou Hobbes, de quem o Eduardo Prado Coelho dizia que a sua maior obsessão era o medo. A minha é a felicidade. Sobretudo agora, que já estou velho de mais para ser outra coisa senão feliz.

O que me terá então dado, aos 20 anos, para ter escolhido Filosofia como formação na velha Fac de Letras: os filósofos eram mal-vistos, uns tipos que andam de cabeça no ar, a olhar para o Sol e para a Lua. Resultado: não vêem onde põem os pés e espatifam-se no primeiro buraco.

E insisto: tenho uma obsessão, na verdade duas, se ser do Benfica e querê-lo sempre campeão, também conta. Mas a felicidade é uma justa obsessão porque sem ela não podemos fazer bem a nós próprios ou ao mundo que nos rodeia. Quando eu era pequenino diziam-me que, se na rua mostrasse medo a um cão, o bicho se largaria a ladrar-me. A vida é um cão que nos ladra, desatinado e arrogante, se lhe mostrarmos uma pontinha que seja de infelicidade.

E volto ao buraco onde deixei os filósofos. Um deles é Heraclito, o grego Heraclito. O Marco do Big Brother – lembram-se dele? – é célebre por ter dado um pontapé. Se a celebridade se mede a pontapé, então o pontapé de Heraclito é uma frase lindíssima e intrigante: “Para os que entram nos mesmos rios, outras e outras são as águas que correm por eles”.

Foi isto que ele disse. Há um rio, pode ser o mar, entramos nas águas, à cálida temperatura do meu luandense Mussulo, mergulhamos, nadamos um pouco, e quando mergulhamos outra vez, já são outras as águas que nos acariciam a pele. A vida é como esse rio, águas que correm e que só nos tocam uma vez.

O que a obsessão com a felicidade me diz é que a vida é essa água e que a mesma água não passa nunca duas vezes. Talvez no futuro alguma boa boca nos queira dar beijos, mas os lábios que alguém hoje nos oferece não voltarão a abrir-se amanhã com o mesmo sorriso e a mesma entrega. Um poeta, o romano Horácio, resumiu tudo noutra frase, “Carpe Diem”. “Agarra o Dia”. Não deixes que o tempo fuja, vive em plenitude.

Outro dos meus filósofos é Parménides. De Parménides, como de Heraclito, chegaram-nos só fragmentos. Num deles, Parménides fala-nos do caminho da Verdade e diz-nos que esse é o caminho do que é e não pode não ser.

É uma frase difícil. Comparado com o pontapé do Marco do Big Brother este é um pontapé de bicicleta. Ou um saudoso pontapé de moinho à Artur Jorge. Simplificando, eu atrevo-me a dizer que o que é, é aquilo que existe e que aquilo que existe não pode não existir. Podemos meter a cabeça na areia como a avestruz, mas não conseguiremos nunca apagar aquilo que existe. Este é outro dos princípios para o obsessivo da felicidade: aceitar o que existe, aceitar – nunca negar – a realidade, o ódio ou o amor com que o mundo nos mima ou sacode.

Há uma razão egoísta para perseguirmos a felicidade: é que ela dá um pessoalíssimo prazer. No entanto, a felicidade é mais do que um ingrediente individual: a felicidade protege e muda o mundo. A felicidade é a coisa mais revolucionária que existe.

Há mais de dois séculos que saímos à rua aos gritos pela liberdade, igualdade e fraternidade. Temos boas razões para isso, muito embora falte a esse utópico programa um ponto fundamental. A humanidade que somos, precisa de beleza. A liberdade, a igualdade e a fraternidade respondem a necessidades básicas e a imperativos éticos. Mas a vida humana não se esgota no reino da necessidade e da ética. Precisamos do luxo, da calma e da volúpia que é a beleza. É essa a cama da felicidade.

O que é uma mulher?

Em vez de perguntar o que é uma mulher, prefiro perguntar que aventura há em cada mulher? Lembro-me das ruas nocturnas do cinema dos anos 50 e 60, em que a minha mente se liquefazia, e de como esse cinema, e com ele o romance, louvava a mulher boémia, transgressora e aventureira. E logo me lembro que, na aurora desse cinema, surgia um filme de Rossellini, “Viagem a Itália”.

Que mulher era a mulher desse filme? Uma inglesa que vinha de viagem, ao lado do marido, inglesa de olhar perplexo a ver as grávidas barrigas italianas de Nápoles ou uma prostitua de rua, eis o que e quem era essa mulher. Que aventura havia nessa mulher casada, em angústias de conjugalidade, a pensar já num divórcio, mas que, perdida de repente numa pagã procissão católica, de andores e nossas senhoras romanas, se reconcilia com o amor, o marido, o casal? Um outro belíssimo cineasta, Eric Rohmer, perguntava, naquela voz alta que é pôr tudo por escrito, se a mais autêntica aventureira, limpidamente transgressora, não seria, afinal, a fiel mulher casada? Era então uma pergunta de esquerda, quase revolucionária, contra um “establishment” todo cerzido em rebeldias, ousadias e orgias de amor livre. De que cor ou ideologia seria hoje a pergunta de Rohmer?

Katherine, assim se chamava a personagem do filme de Rossellini. Mas estava longe de ser inglesa a actriz que lhe dava corpo. O rosto de Katherine era o rosto da sueca Ingrid Bergman. E se querem saber que mulher era Ingrid, eu digo. Sueca embora, era uma actriz americana, actriz de Hitchcock, já uma das maiores vedetas de Hollywood. Vira um filme de Rossellini, cinema pobre, produção de tuta e meia, e escrevera-lhe. Encontraram-se e, ó terra de Deus, entraram os dois em erupção como se fossem os vulcões sicilianos de Stromboli. Eis a aventura que havia na mulher chamada Ingrid Bergman: por amor ao pobre cineasta italiano casado, largou o marido sueco, rasgou o contrato com Hollywood e, transgressão quase tão ultrajante como mandar bugiar Hollywood, abandonou na América a filha adolescente. Amaram-se e fizeram filhos, nesse tempo em que a demografia europeia ainda não estava no fundo do oceano.

E Joana d’Arc? Soldado e guerreiro, seria mesmo uma mulher? É verdade que Ingrid Bergman foi Joana d’Arc, mas a única e realíssima Joana d’Arc que o cinema conheceu chamou-se Falconetti. Actriz francesa, corre a lenda de que o realizador dinamarquês Dreyer a convidou, ainda o cinema era mudo, para ser a heroína de França em “A Paixão de Joana d’Arc”, e a manteve durante as filmagens em regime de tortura, joelhos no chão até sangrar, repetições de cena, uma longa e arrebatadora sinfonia de grandes planos do seu atormentado rosto, de que, tirano, lhe arrancava as mais rasgadas expressões de dor, humilhação e sacrifício. Há, nesse filme que trata só dos interrogatórios e da execução de Joana, uma lágrima, grossa. E quero falar dessa lágrima.  É uma lágrima de mulher ou uma lágrima de homem? Vejam a cena: os carrascos de Joana d’ Arc – e eu já devia estar só a dizer, de Falconetti – rapam-lhe grosseira, dolorosamente o cabelo. A violência da cena serra Falconetti ao meio. Ela suporta o martírio até que todas as suas contidas lágrimas se juntam numa lágrima só, a escorrer-lhe pela face como um uivo inumano. Filmada a cena, Dreyer, calvinista místico, desatou em soluços e em soluços soçobrou a Falconetti, realizador e actriz abraçados, fundidos nessa lágrima, a mais grossa lágrima que o mundo já viu! Era a lágrima de uma mulher ou também uma lágrima de homem?

Publicado no Jornal de Negócios

Recomenda-se, pois claro

Bem vos disse: é o livro mais divertido dos 50 anos do 25 de Abril. Ontem, esteve na mão (e na recomendação) do Ricardo Araújo Pereira. Mas pôs o tal programa a rir-se e bem gostava de saber o que o RAP e o Pedro Mexia estão a dizer um ao outro. Mas lá que se estão a rir…

Chama-se “25 de Abril, no Princípio Era o Verbo”, tem as frases mais loucas de Abril. E tem as ilustrações deliciosas do Nuno Saraiva.

Pintadinho e fresquinho está aqui https://bit.ly/49QM1o3 e chega no dia 19, esta 3.ª feira às livrarias. Vai ser uma loucura, pois claro.

Um livro feliz

Tenham lá a santíssima paciência de acreditar em mim: vai chegar às livrarias, na 3.ª feira, dia 19, o livro mais divertido das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Por uma razão: é todo feitinho com a verdade das frases que encheram as bocas, as paredes, os cartazes, as manifs, a então estatalíssima tê vê. É uma verdade que, por vezes era militante, por vezes era revolucionária, às vezes reaça que se fartava, muito anarquista e muito irreverente também. Mas que humor e riso à solta! Chama-se: 25 DE ABRIL: NO PRINCÍPIO ERA O VERBO.

Já sei, não acreditam em mim! Então acreditem nas imagens do Nuno Saraiva, o mestre da bd que pintou este livro. Ora tomem lá um cheirinho.

Ps – há uns 150 felizardos que já têm o livro. Vieram por esta porta do cavalo (era assim que se falava, então) e levaram-no, pintadinho e fresquinho. https://bit.ly/49QM1o3

A vodka do ditador

Convido-vos ao pesadelo. Venham sentar-se à mesa com Estaline. E preparem-se para um dilúvio de vodka. Sim, calcem os confortáveis sapatos de Churchill ou as rústicas botas de Khruschev: ambos passaram por essa dura provação, os pratos a sucederem-se, sopa, peixe, galinha, caça, cordeiro ou cabrito, tudo banhado, como o Atlântico banha da Europa à África, passando pelas três Américas, por um agreste oceano de vodka.

Será a garrafa o diferencial de cada ditador? Salazar, uma cálida manta sobre os joelhos, bebia o seu vinho tinto e estava na cama à meia-noite, já feitas as orações da noite. A essa hora ia Estaline nos primeiros brindes, toda a mesa levantada, a virar copos de vodka, ritual que os convidados tinham de suportar até às cinco da matina.

Venham, vamos todos à datcha de Estaline, em Kuntsevo. Olhem para a sumptuosa mesa na sala de jantar. Daqui, desta mesa, é que se governava a Santa Rússia, jurou Molotov, ministro dos negócios estrangeiros, na verdade um dos mais íntimos companheiros do ditador georgiano. Os convivas tinham de passar por um bizarro desafio, a prova do termómetro. Ali, no ameno calor da sala, tinham de adivinhar que infernal temperatura estava no gelado exterior. Por cada grau de erro tinham de beber mais uma dose de vodka. Era o caminho para o “in vino veritas” e já lá vou.

Cada jantar era um eterno retorno à iniciática prova juvenil de virilidade: aguentar a vodka como um homem. Era também um teste de sobrevivência: se no vinho está a verdade, Estaline procurava a “veritas” dos seus convidados na vodka, na ânsia de lhes soltar a língua e descobrir um enredado complot, uma pequena traiçãozinha que fosse. No gargalo de cada garrafa de vodka desenhava-se a hipótese de um longo, gélido e mortal degredo na Sibéria ou a clemência de um fuzilamento rápido. Cair bêbado, cabeça enfiada no prato, era a desgraça para o incauto conviva, garantiu Khruschev, que sabia do que falava.

A vodka não será a essência da dilacerada e transparente alma russa. Mas na Guerra Mundial, quando os nazis ameaçaram conquistar essa imensa e grandiosa terra-mãe, a vodka aqueceu os resistentes homens e máquinas. Para cada soldado da frente havia uma ração diária de 100 ml de vodka. Mas o horrível Inverno, essa desolação branca, altíssima muralha de gelo e neve que cercava os exércitos, obrigou os generais soviéticos a desviar a vodka para os carros de combate: à falta de anticongelante, misturavam vodka à água dos radiadores para manter os tanques a ronronar. Só os heróis, os que loucamente se destacavam em combate, tinham a ração diária. Eis o que aumentou ainda mais a generosa combatividade de soldados cuja expectativa de vida, em Estalinegrado, era de umas singelas 24 horas.

Volto ao ditador. Era cambuta, como em Luanda se chamava a um homem pequeno, apenas 1 metro e 65, menos três centímetros do que o anafado Churchill, longíssimo dos quase dois metros do general De Gaulle, para falar de dois convivas que ele arrasou em banquetes. Como era possível, interrogou-se De Gaulle, que aquele sólido meia-leca se tivesse levantado 30 vezes para brindar no jantar que lhe ofereceu em Moscovo? E lembro, a cada brinde bebe-se o cálice de vodka que, depois, se volta, boca do copo para baixo, para mostrar que nem uma gota pinga sobre a toalha. Cada gota derramada, além de sinal de fraqueza do bebedor, é um augúrio de terríveis desgraças futuras. Eis o truque do ditador: Estaline fazia batota, a sua vodka vinha cortada, meio-meio, com água, o que também fazia com o vinho. Tal qual os radiadores dos tanques soviéticos.

Publicado no Jornal de Negócios

Dry martini ou o concorrente de Cavaco

Toda a história da literatura cabe numa garrafa de vinho. Ou de whisky. Exagero, porventura. Mas senão toda, pelo menos meia história da literatura cabe numa garrafa de 7,5 ml. Pensem na homérica garrafa de Hemingway, nas garrafas do português Cardoso Pires, no flagrante delitro de Fernandinho Pessoa. Lembro: era etílica, de puríssimo álcool, a cama infame em que se deitaram os poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, no estremunhado século XIX.

E vejam, um americano, o escritor Charles Bukowski, assombrou a França vinícola: num programa de televisão mete à boca uma garrafa de vinho, Chateaux Margaux, sei lá, e ó camarada ó vira ó vira, sem tirar mais da boca, ó camarada, ó vira ó vira, deglute todo o conteúdo, num acto de poesia abjeccionista. Nunca o programa “Apostrophes” assistira a tamanha hipérbole.  

 Faulkner, o romancista de “Palmeiras Bravas”, era apreciador de um rigoroso dry martini – como eu, quando tinha férias, antes de ser editor de livros –, só o geladíssimo gin, límpido oceano oleado por uma impura azeitona e pelo não mais do que aroma de uma gota de martini.  Dizia Faulkner: «Quando bebo um dry martini sinto-me gigante, sapientíssimo, elevado. Tomo o segundo e sinto-me superlativo. Depois disso, não há quem me segure.» O professor Cavaco que me perdoe, mas tem no dry martini o seu maior concorrente: o dry martini abre auto-estradas sem precisar de PRRs ou subsídios europeus. Como disse o superlativo Faulkner e eu mesmo, na minha modéstia, experimentei, bebe-se e o veludo do gin cria no interior do ser humano uma larga e esplêndida via de comunicação, um vácuo que precisa de metafísica e transcendência para ser preenchido, caso de Faulkner, ou para espíritos mais prosaicos, como é o meu caso, de picanha, churrasco, dantescas doses de queijo da serra.

Dorothy Parker não me desmente: “Adoro beber um ou dois dry-martinis. Com três, atiro-me para baixo da mesa. Com quatro para o colo do meu parceiro.” Não admira, por isso, que se diga que muitos escritores americanos que se conheceram e incendiadamente discutiram noite fora, se se vissem à luz do dia não se reconheceriam, já que nunca tiveram a infelicidade de se verem sóbrios.

O álcool mata e é duvidoso que os 15 graus de um bom tinto ou os fulminantes 42,4 de um Laphroaig de 1960, vintage reserve, venham acompanhados por camonianas “Ninfas amorosas, de amor feridas”, essas que olhos marinheiros logo cobiçam. Mas também é verdade, o que o actor e cronista Robert Benchley disse a um amigo que lhe censurava o dilúvio que o via emborcar, avisando-o de que o álcool era “um veneno lento”: “Pois sim – respondeu Benchley – e quem é que aqui tem pressa?”

Quem tinha pressa era Marguerite Duras. Levantava-se e esqueçam lá o cafezinho matinal, Duras ao primeiro contacto com a luz solar precisava de vinho ou whisky. Tenho de contar isto ao Pedro Nabinho, meu sócio na Guerra e Paz e com culpas no cartório: ele, nos tempos do Festival de Cinema da Figueira da Foz, batia-lhe à porta, em Paris, para lhe levar vinhos portugueses. Volto às ninfas. Raymond Chandler, e bastava a leitura de “The Long Goodbye”, o mais belo dos mais belos dos seus livros, para que tirássemos a camisa e a rojássemos pelo chão para que ele nela limpasse os sapatos, confessou: “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico. O segundo é íntimo, o terceiro rotina. Depois disso, já é só arrancar à amada a roupa toda.” Ou, como um poeta francês, quase ignorado, escreveu: “Quando o meu copo está cheio, esvazio-o/ Quando o meu copo está vazio, encho-o.” Copo erguido, à vossa!

Publicado no Jornal de Negócios

A alma do fugitivo

Lazare Pytkowicz

Fugir. Todo o ser do pequeno Lázaro se concentra apenas nisso: fugir. É o Verão de 1942. Pé de ferro, mão de aço, o poder nazi, a sombra do bigode de Hitler escurece a Europa, mesmo o Verão de Paris. No Velódromo de Inverno da cidade luz, as milícias francesas, perfiladas e obedecendo às ordens da Gestapo, acabam de amontoar, entre gritos, desmaios e vómitos, doze mil judeus. Há homens, mulheres, crianças, um coro ainda sonoro de mães com bebés.

Foi particularmente quente o Verão de 42 em Paris? O que aqueles cativos sabem, sem comida nem água, é que o Velódromo escalda. E as mães, com os bebés a berrar baba e ranho, querem água para acalmar o sofrimento dos infantes. Há, em frente a uma das portas do Velódromo, uma mercearia. As mulheres empurram os seus guardas de negro vestidos, há um clamor, pedem, imploram, revoltam-se, esgadanham. O pequeno Lázaro, de 14 anos, encosta-se ao motim maternal. As mulheres – são 50, são 100? – conseguem forçar a porta e estão na rua, correm para a mercearia, os guardas descontrolados atrás delas. O pequeno Lázaro desvia-se para a direita. Ninguém tem os olhos nele, que o motim é íman que atrai e cola milícias, mães e bebés. Todo o ser do pequeno Lázaro, o coração, os músculos, a alma, se concentra na corrida de 30 segundos de que precisa para fazer um pedaço da rua Nélaton e virar à esquerda. Arranca a nefanda estrela amarela do seu fatinho parisiense e foge. Vira a esquina e sabe, numa euforia dolorida, que deixou para trás a ignomínia e a terrível morte.

No Velódromo, o pequeno Lázaro deixou pai, mãe e irmã, os Pytkowicz, que há quase 20 anos tinham chegado a Paris, fugidos da Polónia e dos pogroms, esse desporto que era assassinar judeus. No Velódromo pediu aos pais autorização para tentar fugir. A mãe não quis, mas o pai, percebendo um destino funesto no tratamento de gado que já era o Velódromo, deixou-o tentar a sorte.

Para onde irá o pequeno Lázaro, agora? Não pode regressar à casa abandonada, ao silêncio da mesa da sua sala, às flores da mãe que murcham e desfalecem no vaso. Vai para casa do melhor amigo da escola. A família francesa, brava, esconde-o. Levam-no para Lyon, onde a Resistência lhe vai dar família e estudos. Mas o ressuscitado Lázaro recusa: quer combater os nazis. Clandestino, chamado agora Petit Louis, passa a ser o insuspeitado agente de ligação dos Movimentos Unidos de Resistência.

A Gestapo prende-o, já tem 15 anos. Torturam-no e é mesmo Klaus Barbie quem lhe bate. Petit Louis, ardiloso, diz que tem um encontro numa praça de Lyon com uma figura chave da Resistência. A Gestapo acredita. Levam-no e, mal o deixam, para simular o encontro, a alma fugitiva do Petit Louis ressuscita e eis que corre em Lyon como se corresse em Paris. Disparam, não lhe acertam, consegue esconder-se debaixo do assento de um carro.

Queimado em Lyon, a Resistência leva-o para Paris. Volta a chamar-se Lázaro e são as milícias francesas que o prendem em 1944 e o entregam à Gestapo. Está num comboio, com destino à morte. Tem de mudar na gare de Lyon, em Paris. E volta a ressuscitar dos mortos. Na gare, subtil, passa da fila de gado para abate, para a fila dos franceses que passam. Pela terceira vez, Lázaro fugiu à morte.

Depois da Libertação, no liceu, chamam-no à sala do reitor. Um general francês entrega-lhe, em nome da França, a condecoração de Companheiro da Libertação. O pequeno Lázaro, 17 anos, mete a medalha no bolso para que os colegas não se riam dele, e volta ao lugar para sua aula de matemática ou língua francesa.

Publicado no Jornal de Negócios

Os livros de Março: 12

Bom dia, meus amigos e amigos do livro. Pelo vosso ardente amor ao livro, tenham a
santíssima paciência de se deixar levar por estas águas de Março, um rio de 12 novos títulos. 

os meus livros de Março
ricos de Portugal comprem o livro nacional

«Nem mais um anticiclone para os Açores, nem mais um faroleiro para as Berlengas”, eis o espírito com que a Guerra e Paz editores me entregou os livros do mês, como se fossem as águas de Março. Com o 25 de Abril à cabeça. O António Costa Santos traz-nos mulheres com véus em igrejas escusas, incendiários isqueiros proibidos, o fascinante segredo de umas pernas sempre jovens e o livro chama-se Antes do 25 de Abril Era Proibido: a capa é muito boa, mas o miolo ainda é melhor.

Há mais 25 de Abril, já lá vou, não sem que antes o André Osório, tão jovem poeta, nos diga, em verso «O tempo sabe a castanhas, a ameixas, / a figos. Quem pode dizer que fora a infância/ um estado idílico?» É um livro de memórias e perigo, Sala de Operações.

Da poesia ao romance, nas Novas Edições de Jorge de Sena publico o seu romance maior, o maior romance do século XX português, Sinais de Fogo, romance de «liberdade inescapável, a liberdade como maldição irredutível», descoberta do sexo, da consciência política, da criação poética: pessoalíssimo 25 de Abril de Jorge de Sena, muito antes de haver 25 de Abril.

E agora um parêntesis americano: Sobreviver a Esta Noite, de Riley Sager, um rapaz de boa escrita que vive em Princeton, leva-nos para os escarpados territórios do thriller, uma geografia de suspense, medo, um humor vertiginoso. E agora surpreendo-vos: Virgílio Castelo, actor e autor português, faz o mesmo, mas com Deus, num romance que têm de ler, Haja Deus, Se Deus Quiser. Deus farta-se e desaparece. Sabem quando? Exactamente no dia em que, falecidíssimo, Fernando Pessoa se apresenta no céu. Livro sério, mas, e será que se pode dizer, de uma ironia celestial.

Não é um romance, mas o historiador militar Fernando Rita, em Heróis Esquecidos da História de Portugal exalta feitos gloriosos, sacrifício e morte no campo de combate de figuras do passado como o besteiro de Atoleiros, o espingardeiro de Toro, e da ainda tão viva guerra de África, como o combatente de Quissonde, em Angola, ou o furriel da estrada maldita, em Moçambique.

Regressam Os Livros Não Se Rendem, com o apoio da Fundação Manuel António Manuel da Mota e da Mota Gestão e Participações. Do filósofo Roger Scruton, o livro que eu gostava que um dia (um dia!) alguém escrevesse sobre Portugal: Inglaterra, Uma Elegia. Nostálgico, sereno, estóico, Scruton enternece-nos com a sua visão do carácter, da cultura, da lei, do governo, da ruralidade, da religião que são próprias dos ingleses: you can’t take England out of the boy. É lindo.

Com o Atlas do Médio Oriente: as raízes da violência, um novíssimo e actualíssimo volume dos Atlas da Guerra e Paz, os leitores, levados pela escrita de Pierre Blanc e Jean-Paul Chagnollaud e pelos mapas concebidos por Claire Levasseur ficam a saber por que razão o mundo está tão perigoso.

E eis um olhar português sobre esse mundo: o economista António Rebelo de Sousa escreveu Da Reforma do Capitalismo, um ensaio que combina teoria económica com antropologia, história e geografia, confrontando-se com outras grandes teses, como as de Thomas Piketty, por exemplo. Quem não quer espreitar o futuro?

Ora, foi no 25 de Abril de 1974 que começou o nosso futuro. E eu atrevo-me a dizer que a Guerra e Paz tem o mais desempoeirado, livre, desabrido e divertido livro para comemorar os 50 anos dessa imensa explosão. Com organização e umas prosas deste vosso fraco escriba (Manuel S. Fonseca, sim senhor) e com excelentíssimas e irreverentíssimas ilustrações do mestre da bd Nuno Saraiva, 25 de Abril: No Princípio Era o Verbo é um livro para se ver, passar a mão pela quadricromia, e recitar página a página em impetuosa gritaria: estão no livro centenas de frases que, em Abril e no PREC, nesse cataclísmico Verão Quente de 1975, se entoaram nas ruas, se escreveram nas paredes, ou decoraram cartazes. De «Cada voto na AOC é uma espinha cravada na garganta do Cunhal» a «Força, força, Companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço», passando por «Abaixo a foice e o martelo, Viva o Black and Decker» ou «Viva a dentadura do proletariado» e ainda «Viva o próximo governo que este já tomou posse», do fanatismo à irrisão, da nobre militância à desbragada anarquia (e lembro o slogan «Anarquia, sim, mas não tanto» que os espantados e despeitados anarcas escreveram então nas paredes de Portugal) este é o livro que nos faz hoje pensar como foi possível, há 50 anos, o Big Bang português! Quem se atreve a não comprar este livro? Ricos de Portugal, comprem o livro nacional! E ricos somos todos. De espírito, pois claro!

Falei de águas de Março. Ora aqui estão dois livros com que queremos regar e acarinhar a nova chancela, a Crisântemo. De chrysanthèmes en chrysanthèmes, já cantava Jacques Brel, e o primeiro crisântemo é da psicóloga e psicoterapeuta Sílvia Coutinho: com O Poder da Relação um livro que talvez nos lembre o que tantas vezes esquecemos, como amar.

Um crisântemo francês para acabar. A polémica Caroline Goldman, doutorada em psicopatologia clínica, convida-nos a ler o seu As Crianças Precisam de Limites (bestseller mundial, pedem-me que acrescente), um livro que faz em fanicos alguns preconceitos da chamada parentalidade positiva. As Crianças Precisam de Limites tem uma missão nobre: aliviar o sofrimento das crianças perdidas e impotentes face ao caos de um mundo sem balizas. E aliviar o sofrimento dos pais, também.

Manuel S. Fonseca, editor